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Domingo, 5 de Março de 2006

Jornal Público
Domingo, 5 de Março 2006

http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?a=2006&m=03&d=05&uid=&id=66744&sid=7340

"Já mandei pedradas, já dei com paus, já roubei muitos toxicodependentes"

por Ana Cristina Pereira

O caso de Gisberta, a transexual encontrada morta numa garagem abandonada, trouxe o problema para a opinião pública, mas o ataque a toxicodependentes em fim de linha é uma prática corrente em bairros de grande tráfico e consumo. Como o São João de Deus, no Porto. Os nomes são fictícios, mas as histórias são tão reais como a exclusão que as gera

Um polícia de metralhadora em punho impede a entrada na rua principal. Descendo a via que dá acesso à esquadra, narizes que se empinam. Quarta-feira, 1 de Março, mais um dia de rusga no Bairro de São João de Deus, no Porto. Alexandre e Félix observam as diligências policiais. Submersos. Sem desespero ou espanto. O tráfico e o consumo fazem parte do seu quotidiano. Ainda há umas horas, Roberto, um reguila de 13 anos, apedrejou uma toxicodependente sem abrigo que tentava refugiar-se num dos apartamentos devolutos que as retroescavadoras hão-de reduzir a escombros. "Vêm por aí acima, a cair aos bocadinhos! No meu prédio não passam, que lata! Se vejo algum ressacado passar, apanho um calau e pimbas!".

Em frente ao apartamento de Roberto há um bloco sem portas ou janelas. Lá dentro, vultos que gemem, vultos que se injectam, vultos que fumam em cachimbos minúsculos forrados com prata atada com elástico de preservativo. Lá dentro, sida, tuberculose, hepatites, hematomas. Roberto não gosta de os ver ali. "Aquela saiu pela janela do outro lado. Se saísse pela porta, estava agora toda pisadinha!"

No bairro, agredir um toxicodependente em fim de linha é tarefa de bandos de pré-adolescentes. O problema revelado com a morte de Gisberta não é uma excepção. Nos bairros de tráfico do Porto é vulgar encontrar grupos de adolescentes que agridem pessoas com evidente fragilidade física.

Na vizinhança, não há quem ralhe a Roberto. Os adultos "também os enxotam". "Ai que nojo, que nojo! Não tomam banho! Fumam droga e ficam todos malucos!", protesta um miúdo gordo, de 12 anos, de nariz muito franzido.

Os agentes vasculham dois apartamentos suspeitos do bloco 3. Os olhares trepam desde as vias públicas sujas. O bairro parece suspenso. Nem sinal de línguas soltas. A requalificação urbana, que arrancou em Fevereiro de 2003, já eliminou mais de metade dos prédios. O "Tarrafal" enfraqueceu. Entra a polícia e ouve-se gritar "água!"; sai e é hora de saber se leva alguém.

A tarde vai a meio e Alexandre e Félix naquele murmúrio atento. Dezasseis anos e nada que fazer. Um deixou a escola aos 13, o outro aos 14. "Eram muitas horas dentro da sala", queixa-se um. "Era difícil acordar de manhã", achega o outro. Só o recreio lhes causava agrado. Por vezes, o agrado era tanto que tocava a sineta para entrar e deixavam-se estar - a jogar à bola ou às cartas.

Chegavam "a mandar cadeiras aos professores". Andavam "à porrada com os colegas". Aliavam-se a outros miúdos, faltavam às aulas, armavam-se em aves de rapina que pairavam sobre "os ressacados". Divertiam-se a atacá-los. "Já mandei pedradas, já dei com paus, já roubei muitos toxicodependentes", gaba-se Alexandre.

Raimundo seguiu o caminho dos amigos e também ele deixou a escola. Tinha 15 anos, por cinco vezes reprovara no 7.º - "O que estava lá a fazer?". Alexandre, Félix, Raimundo são produto de "Tarrafal City", como eles designam o bairro. Encaixam que nem uma luva no protótipo definido pelos estudiosos da delinquência juvenil. As suas histórias de vida inspirariam a Condessa de Ségur.

A mãe de Alexandre "foi presa em 1994 e o pai em 1995". O miúdo passou a viver com uma tia - "Tinha de me portar bem, senão levava nos queixos". Quando a mãe foi libertada, o rapaz foi morar com ela. O que ela lhe dizia "entrava a 100 e saía a 200". A história do primo não é menos densa - "A minha mãe abandonou-me". Viveu com a avó até aos 10 anos. Depois, mudou-se para casa do pai, que também não lhe soube impor regras.

Um telemóvel de topo

A PSP detém um casal com 45 gramas de heroína, uma "tijoleira" (material usado para dosear a droga), sacos de plástico. Na rua principal, reposicionam-se os "capeadores" (toxicodependentes que ganham o seu consumo a levar clientes aos traficantes). Dos blocos à esquerda, os "picas" (toxicodependentes que ajudam outros com saúde mais precária a injectar-se) prosseguem, com vagar, as suas tarefas minuciosas.

Alexandre e Félix já passaram a fase da mera farra, já assumem um comportamento de natureza mais aquisitiva. As marcas e as modas assim o ordenam. Posicionam-se na recta que dá acesso ao bairro. Os "ressacados" estão à mão. Félix exibe um telemóvel cinzento, última geração. "Roubei este Nokia 6630 a um toxicodependente! Isto custa para aí 50 contos! Vês que têm dinheiro?...".

Os dois primos já não se confinam ao bairro. As autoridades suspeitam que aproveitam a confusão instalada nos autocarros, nos centros comerciais, nos jogos do Estádio do Dragão para sacar carteiras e telemóveis. E, no que toca a viaturas, já não se ficam pelo gozo de furtar as motos aos toxicodependentes para andar com elas "até secar". Partem vidros a carros estacionados em busca de auto-rádios e do que mais houver.

Os rapazes não apregoam tais derivas aos quatro ventos. A gabarolice termina com a chegada à idade crítica. Completados os 16 anos, a cadeia torna-se uma probabilidade. Muitos abandonam a delinquência e os que não o fazem aprumam estratégias de defesa. São predadores para a cidade, mas também têm os seus predadores.

Em Fevereiro, Alexandre foi julgado no Tribunal de Menores do Porto - "Não me internaram, devem ter achado que era bonito!", brinca. Félix solta uma gargalhada. Também já passou pelo tribunal ileso. "Aqui temos cara de rufias; lá fazemos cara de anjinhos".

Apenas uma pequena parcela de jovens de bairros sociais tem ficha criminal. Mas o grosso dos referenciados pelas autoridades é como os primos, aponta fonte policial. Provém de contextos sócio-económicos desfavorecidos onde a escola vale pouco e a criminalidade vinga numa lógica de resistência à exclusão.

Silêncio sobre o futuro

Alexandre e Félix foram dos primeiros miúdos que as técnicas do centro comunitário - um prefabricado gradeado instalado à entrada do bairro - apanharam na rua há uns cinco ou seis anos. Nunca se entusiasmaram com as acções propostas. "Não gostam de estar num espaço fechado muito tempo, não conseguem cumprir regras básicas, como não fumar aqui dentro ou não cuspir para o chão - eles em casa cospem", justifica a psicóloga Zelinda Pinto.

Alexandre gostava de ser electricista. Já pediu "para tirar o curso", mas não há respostas para pessoas como ele. Só completou o 3.º ano, precisava de ter o 6.º ou o 9.º para ingressar numa formação. Pergunta-se a Raimundo o que quer fazer da vida e é o silêncio. "Não quer fazer nada, quer ficar em casa à espera que o dinheiro caia do céu", goza Félix.

A gargalhada de Félix é sonora, mas ele também não delineou objectivos. Quando chega a sua vez de discursar sobre o futuro, remete-se a um longo silêncio que só corta com a provocante frase: "Não pensei nisso... Agora estou a pensar em ir fumar uma ganza".


Jornal Público
Domingo, 5 de Março 2006

http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?a=2006&m=03&d=05&uid=&id=66732&sid=7339

Actos sexuais com adolescentes passam a crime único

O crime de actos sexuais com adolescentes e o de actos homossexuais com adolescentes, previstos e punidos pelos artigos 174º e 175º do CP, serão reunidos num só. Agora, à luz do artigo 174º, para que um acto sexual com menor entre 14 e 16 anos seja crime é preciso que tenha havido abuso da inexperiência desse menor. Segundo o 175º, a inexperiência do menor não é condição necessária para que um acto homossexual com adolescente entre os 14 e 16 anos seja considerado crime.

"O Tribunal Constitucional, em dois acórdãos, já censurou esta discriminação. Vamos tornar a norma única, prevendo um crime de actos sexuais com adolescentes entre os 14 e 16 anos, punido da mesma forma, quer se trate de actos homo ou heterossexuais", frisou Rui Pereira.

As alterações ao CP prevêm ainda dois crimes novos que podem ser cometidos em relação a menores entre os 16 e os 18 anos. "Se alguém mantiver relações sexuais mediante pagamento com um menor de 18 anos, esse facto passa a ser criminoso. Actualmente não é. Um segundo crime novo é a utilização de menores de 18 anos em actividades pornográficas. Actualmente, esse limite são os 16 anos. Estes dois crimes reforçam a protecção dos adolescentes com idade inferior a 18 anos por força de decisões-quadro da UE, a que Portugal está naturalmente obrigado", afirma. Outra alteração tem a ver com a possibilidade de o autor de crimes sexuais ser inibido de exercer a profissionais junto de crianças, por um período de 15 anos, o mesmo período durante o qual alguém que comete um crime sexual está inibido de exercer o poder paternal.

A proposta faz uma equiparação entre uma penetração com objectos e uma penetração sexual normal. A penetração com objectos é punida de forma menos grave. "Nós consideramos que a penetração vaginal ou anal com objectos é igualmente grave, portanto vai ser punida em identidade de circunstâncias", explica.


Jornal Público
Domingo, 5 de Março 2006

http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?id=66745&sid=7340

Caixa

O Crime

No fim-de-semana de 18 e 19 de Fevereiro, Gisberta, de 45 anos, terá sido amordaçada, espancada, apedrejada por um grupo de menores, que lhe terão ainda introduzido objectos no ânus. Na terça-feira, terão atirado a vítima a um fosso, situado numa garagem abandonada no Campo de 24 de Agosto, no Porto. Gisberta era transexual, sem-abrigo, toxicodependente, seropositiva, trabalhadora do sexo, imigrante ilegal. Houve quem apontasse o dedo à Oficina de São José, onde estavam internados quase todos os menores. Mas a violência exercida sobre alvos vulneráveis e isolados extravasa as portas da instituição. No Porto, já houve um grupo de jovens que só assaltava travestis e transexuais.

O Bairro

Construído em quatro fases (1944, 56, 68, 95), o São João de Deus serviu para realojar populações carenciadas que moravam em barracas ou em aglomerados tipo acampamento. Em 2001, a autarquia estimava em 3500 o número de habitantes dos 707 fogos, mas a PSP dizia que seriam cerca de cinco mil. Era forte a tendência para a coabitação de gerações. O bairro tornou-se célebre pelo tráfico e pelo consumo de droga. A degradação urbanística tornou-se extensa e grave. Desde 2003, está em marcha um plano de reconversão que já resultou na demolição de mais de metade do bairro.


Jornal Público
Domingo, 5 de Março 2006

http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?id=66742&sid=7340

Agressões aos mais fracos motivadas pelo medo e intolerância

por Ana Cristina Pereira

Sozinhas, as crianças do bairro não arriscam agredir um toxicodependente. Atacam em bandos, num grande alarido. Para muitos, a imagem dos toxicodependentes expõe-lhes o medo que têm do seu próprio futuro

"É a cultura que se gera: ser o maior é ter poder sobre os outros". Há anos que Ana Soares, assistente social do centro comunitário da Fundação Filos, instalado no Bairro de São João de Deus, no Porto, se agita com os ataques a toxicodependentes em fim de linha - já houve época de frequentes relatos de agressões que faziam verter sangue. Para dissuadir os agressores, as técnicas seguiram a estratégia do susto: já que não conseguem convencer os miúdos a respeitar a fragilidade alheia, alegam que tal pode ser perigoso para eles - por causa do HIV e demais doenças infecto-contagiosas.

As agressões não são exclusivas do São João de Deus. Ocorrem, ainda que com menor expressão, do outro lado da cidade, no Bairro do Aleixo. É, atesta fonte policial, um fenómeno frequente em bairros de grande tráfico e consumo de droga, onde deambulam toxicodependentes em fim de linha, desprotegidos e fragilizados fisica e psicologicamente. Mesmo quando roubam, presume-se que as crianças não sejam comandados pelo mero desejo de lucro - raramente a vítima tem mais do que um pacote de droga ou cinco euros. O que parece faltar é tolerância. Porquê, se muitos até têm familiares com percursos de dependência?

Ana Soares acredita na chamada "teoria do espelho". São crianças e jovens de contexto desfavorecido e sem retaguarda familiar. Os menores "insurgem-se contra pessoas ainda mais marginalizadas do que eles". Olham para os toxicodependentes, quais farrapos humanos, e pressentem que aquilo lhes pode acontecer. "Ficam com raiva". A psicóloga Zelinda Pinto, técnica do mesmo projecto, tem outra tese: "Muitas vezes, agem por imitação: os traficantes tratam mal os seus "capeadores" [toxicodependentes que ganham o seu consumo a angariar clientes para os traficantes] para mostrar às autoridades que não têm nada a ver com o tráfico". Os agressores "são os próprios filhos de traficantes", confirma, em tom de queixa, um consumidor.

Os toxicodependentes em fim de linha "acabam por ser um estorvo para os traficantes", esclarece a mesma fonte policial. Destruídos pela doença, perdem "toda a utilidade" - já não conseguem vender, já não conseguem controlar a chegada da polícia, já não conseguem angariar clientes. Mas amanham-se por ali - dia e noite, noite e dia.

Para ganhar a sua dose, há quem monte banca de limões, prata, caricas, toalhetes, água destilada, filtros. Uns poucos armam-se em "enfermeiros" e ajudam outros a injectar-se. Mas há os que já só logram deixar-se estar, a mendigar uns restos.

As crianças e jovens "não têm formação moral", apedrejam-nos, espancam-nos, roubam-nos. Mas, se estiverem sozinhos, não se atrevem a fazê-lo, salienta Zelinda Pinto. Atacam sempre em bandos, numa algazarra. É mais uma forma de se afirmarem.

De noite, o bairro enche-se de breu. Os miúdos partem as lâmpadas públicas - à pedrada ou ao tiro. Vão-se telhados e vidros. A semana passada, uns quantos encontraram uma lata de spray na rua, viraram-se para o centro comunitário - todo gradeado - e inscreveram os seus próprios nomes em letras garrafais. "Não têm consciência", interpreta a psicóloga.

Houve uma altura em que chamavam a Telepizza para moradas próximas. Roubavam as pizzas e circulavam na motorizada até gastar o combustível. Divertem-se, mas também "há requintes de malvadez", torna o polícia. Miúdos que gritam: "Filha da p... Morre para aí!".

De quando em quando, lá está uma equipa do Instituto Nacional de Emergência Médica a socorrer um toxicodependente. Queixas na esquadra instalada à entrada do bairro, poucas. É como se as próprias vítimas tivessem assimilado o ataque como tradição.

Jornal Público
Domingo, 5 de Março 2006

http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?id=66743&sid=7340

O caso Pedro num beco sem saída

Cresceu a chapinhar à vontade nas malcheirosas poças do Bairro de São João de Deus. Tinha 11 anos quando foi internado num "colégio". Regressou aos 14, aos 15, aos 17, aos 19. Não foi "educado para o direito", como tentou o Instituto de Reinserção Social. Está com 21 e aguarda julgamento por tráfico de droga.

Iniciou a carreira criminal aos 12 anos, a assaltar toxicodependentes em fim de linha. "Não andava sozinho, actuava em grupo". Divertia-se "a fazer merda". Quando deu por ela, andava a roubar carros e a "fazer montras". Fez "muita coisa, muita". Empunhou "caçadeiras, pistolas de 6,35 mm, quase todo o tipo de armas". A família sabia, mas "não fazia caso".

Experimentou "todas as drogas menos a castanha [heroína], que essa agarra-se ao sangue e nunca mais sai". Da última vez que virou costas a um centro educativo, jurou que nunca mais. Estava decidido a mudar de vida. Tentou ter um "trabalho certinho". Mas tem a quarta classe - "baldava-se" muito às aulas para "fumar charros"; quando punha o pé na sala de aula, amiúde, armava barraca...

Não é só a escassa escolaridade. Pedro não está habituado a cumprir horários e a receber ordens. O meio laboral é muito agressivo para quem não tem a cultura do trabalho. Há especialistas do comportamento desviante que falam em "inempregáveis". E ser inempregável é romper com um princípio basilar da sociedade, que vê quem não trabalha como uma ameaça à sua segurança.

Para "não fazer mal a ninguém", o rapaz virou-se para o tráfico de droga, como tantos outros com quem lida. Foi a maneira que encontrou de assentar. "Andar no assalto é pior. Pode haver tiros. No tráfico, aparece a polícia e a gente foge à frente deles como já aconteceu muitas vezes". Pedro vê os pré-adolescentes atacar vulneráveis toxicodependentes, como era costume nos seus tempos de miúdo. Sabe que alguns entrarão nos eixos e que outros cumprirão percursos semelhantes ao seu. Desculpa-os com "o sofrimento da vida". Não os julga.


Jornal Público
Domingo, 5 de Março 2006

http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?a=2006&m=03&d=05&uid=&id=66749&sid=7340

Menor ligado ao caso da morte de transexual pede "habeas corpus"

por Mariana Oliveira

Um dos 13 menores suspeitos de estarem envolvidos na recente morte de uma transexual brasileira, no Porto, pediu um habeas corpus junto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). A entrada do pedido foi confirmada ontem ao PÚBLICO por João Carvalho, porta-voz do STJ, que também indicou que o processo, de carácter urgente, foi distribuído a um juíz no final da semana. O magistrado terá oito dias para decidir o habeas corpus, um meio de defesa previsto no artigo 31 da Constituição para responder a uma "prisão ou detenção ilegal".

A notícia foi avançada anteontentem à noite pelo Portugal Diário. O PÚBLICO não conseguiu apurar qual dos menores terá feito o pedido, nem qual foi o seu fundamento. Segundo o Código de Processo Penal há três situações ao abrigo das quais pode ser solicitado o habeas corpus: quando a detenção é efectuada e ordenada por uma entidade incompetente; quando é motivada por um facto para o qual a lei não a permite ou quando são violados os prazos limites da detenção.

Recorde-se que apenas um dos 13 menores ouvidos pelo Tribunal de Menores do Porto ficou sujeito à guarda de um centro educativo em regime fechado. Dez ficaram igualmente em centros educativos, mas podem sair da instituição. Um dos dois restantes regressou às Oficinas de São José, a instituição onde estava acolhido, e outro foi ilibado de todas as suspeitas.

Outro menor, com 16 anos, foi ouvido no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, que decretou a sua prisão preventiva, tendo sido transferido para o Estabelecimento Prisional de Custóias, em Matosinhos.

O pedido de habeas corpus poderá estar relacionado com as medidas tutelares aplicadas aos jovens ouvidos pelo Tribunal de Menores, que têm entre os 13 e os 15 anos. Segundo a Lei Tutelar Educativa, os jovens podem ser alvos de medidas cautelares como a guarda em centro educativo. Mas o regime fechado só pode ser aplicado aos menores com idade igual ou superior a 14 anos.

O corpo de Gilberta, a transexual brasileira de 45 anos, foi encontrado no passado dia 22 pela polícia num poço com 15 metros de profundidade, depois de um dos menores ter confidenciado a uma professora o sucedido e esta ter avisado as autoridades.


Jornal Público
Domingo, 5 de Março 2006

http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?a=2006&m=03&d=04&uid=&id=66554&sid=7323

Exclusões

por São José Almeida

Artigo de Opinião

Para a presunçosa arrogância da ignorância nacional, Gisberta era apenas uma bicha brasileira drogada que se vestia de mulher e se prostituía na rua e que - como muitas outras o são também diariamente por todo o país - podia e merecia ser agredida

O crime sádico e bárbaro cometido por 13 jovens, que espancaram e seviciaram sexualmente uma transexual brasileira, ilegal, cocainómana, doente de sida e sem-abrigo, no Porto, abandonando-a de seguida para morrer, só voltando ao local do crime 48 depois, para esconder o cadáver num poço, chocou o país e é, sem qualquer espécie de dúvida, um crime brutal e atroz. Um crime perverso, não só pelos contornos sádicos, segregacionistas e discriminatórios, mas também pela perversidade que está subjacente às razões que levaram a que este crime acontecesse. Essa perversidade - que tem múltiplas faces, quer do lado dos jovens que cometeram o crime, quer do da sua vítima - é uma realidade complexa, que, na sua multiplicidade, se insere toda ela num conceito: exclusão. Foi a exclusão que levou os jovens a um comportamento deste tipo. Foi a exclusão que levou a vítima à situação de fragilidade que permitiu ser sobre ela perpetuado o crime hediondo.

É evidente que o facto de os jovens serem eles mesmos vítimas de exclusão não diminui o horror do crime que cometeram, nem é razão para que não sejam devidamente responsabilizados pelos actos criminosos que praticaram. Por outro lado, não deve ser omitido o efeito da dinâmica de grupo entre jovens, sejam eles de que estrato social forem. Mas não pode ser ignorado o facto de estes jovens estarem já enquadrados em instituições privadas de solidariedade social geridas pela Igreja católica, que supostamente deviam ser fiscalizadas pelo Estado e que deviam ter por função a inserção social de crianças e jovens, cujas famílias não têm condições de os enquadrar socialmente, educar e formar como cidadãos com valores e com uma ética social baseada nas referências que constituem a vida em sociedade e, acima de tudo, o respeito pelo ser humano. Mais: o que este crime vem questionar antes de tudo é o que é que falhou da parte dos responsáveis católicos que tinham a responsabilidade da inserção social destes jovens? Que quadros de referência são ensinados pela Igreja católica? Como é que o Estado fiscaliza a situação das crianças em relação às quais tem responsabilidade?

Esta questão é tanto mais pertinente quanto é sabido que todos estes jovens estão, do ponto de vista psicológico, em idade de formação. Se bem que isso não possa ser atenuante da responsabilidade que lhes deve ser assacada, faz toda a diferença, quando se fala da pena. E aqui não se faça confusões quanto à questão da inimputabilidade penal dos jovens. Os jovens não são inimputáveis em Portugal. Eles são punidos a partir dos 12 anos, nomeadamente com penas de reinserção social. Tal como são os jovens ingleses, que viram a sua idade penal reduzida e que não cumprem a sua pena em prisões, mas sim em instituições de reinserção. A questão é que, quando a ONU aponta, baseada não só mas também nos estudos psicológicos da formação da personalidade, a idade de 18 anos como limite para conceptualização jurídica da criança e do jovem, quando se discute sobre a ineficácia social de reabilitação do sistema prisional clássico, quando se discute sobre a diminuição e substituição das penas de cadeias, não tem qualquer sentido vir agora abrir uma discussão sobre a punição de jovens criminosos com penas de cadeia clássica. De que serve pôr estes jovens em Vale de Judeus? Torná-los catedráticos em crime?

O assassinato de Gisberta expôs à luz do dia um outro nível de exclusão. Gisberta era uma transexual brasileira, artista de transformismo, que caiu na prostituição para alimentar a dependência da cocaína que adquiriu nos últimos anos, acabando por contrair sida, que se manifestou há cerca de um ano, com infecções oportunistas associadas, como a tuberculose. O estado de degradação a que a toxicodependência a levou atirou-a para a rua, acabando por perder o seu visto de residência em Portugal, passando à ilegalidade e vivendo os últimos tempos da sua vida como sem-abrigo. Um quadro completo de exclusão, que fez com que tivesse como único apoio a Abraço. A exclusão de Gisberta era uma exclusão múltipla. A exclusão da sua situação de imigrante, que ainda por cima ficou ilegal - por que razão é que, se a Abraço informou o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras da situação de Gisberta, ninguém actuou? A exclusão da toxicodependência, que, apesar das evoluções positivas da lei, que encara já o problema como uma doença e não um crime, continua a ser um estigma social fortíssimo em Portugal. Mas também a exclusão homofóbica e transfóbica. E se este crime não é apenas um crime homofóbico - pois todo o quadro social de Gisberta era de uma total fragilidade, até física, pela doença -, é claríssimo que ele é-o também. Isto porque, se estes jovens poderiam ter batido noutro sem-abrigo, o caso concreto é que Gisberta era transexual e o crime incluiu sevícias claramente homofóbicas, como a introdução de objectos no ânus de Gisberta. Aliás, a discriminação, neste caso, não é sequer uma discriminação homossexual. Gisberta não era homossexual, era transexual. É claro que, todas as diversas realidades de género, que estão estudadas, desde o nível hormonal ao da personalidade, enquadradas cientificamente e juridicamente reconhecidas noutros países em que a qualidade da democracia é uma preocupação, em Portugal são ostensivamente misturadas. Para a presunçosa arrogância da ignorância nacional, Gisberta era apenas uma bicha brasileira drogada que se vestia de mulher e se prostituía na rua e que - como muitas outras o são também diariamente por todo o país - podia e merecia ser agredida.

E, por fim, mas não menos grave nem menos estigmatizante em Portugal, a exclusão da sida. Só isso explica que Gisberta fosse apenas apoiada pela Abraço, instituição privada. Por que razão é que, apesar de a Abraço ter informado o delegado de Saúde da situação de Gisberta, como tem de fazer sempre, ninguém se preocupou em a acompanhar e permitiu um caso de saúde pública, ou seja, que Gisberta se continuasse a prostituir para comprar cocaína, mesmo contagiando os clientes com sida e com tuberculose? Por que ninguém se interessou pelo caso? Talvez porque, como já se disse, para a presunçosa arrogância da ignorância nacional Gisberta era apenas uma bicha brasileira drogada que se vestia de mulher e se prostituía na rua e que - como muitas outras o são também diariamente por todo o país - podia e merecia ser agredida. Só que Gisberta morreu.



ver também:
Pedido de Acção
Comunicados de Imprensa


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