A Associação ABRAÇO, a Nota Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa sobre " Os cristãos e a luta contra a SIDA " e as declarações à SIC do cidadão Tomás Carvalhão, padre
Com o sentido de oportunidade que a caracteriza, a hierarquia da Igreja Católica Portuguesa publicou uma Nota Pastoral intitulada "Os cristãos e a luta contra a SIDA", exactamente uma semana antes da realização do XV Encontro Nacional da Pastoral da Saúde, obviamente para que não fosse deixado a esse encontro alargado qualquer possibilidade de exprimir opinião divergente da ortodoxia.
Esta Nota, para além de reflectir as "sobejamente conhecidas ... reticências" da Igreja Católica ao uso generalizado do preservativo (a que começa por aludir de forma eufemística, perifrástica e entre aspas) e a sua tradicional doutrina em relação à sexualidade humana, contém várias afirmações erradas, equívocas e, mesmo, perigosas.
Em primeiro lugar, a infecção pelo VIH/SIDA não é "uma ameaça" ou um "sinal de uma crise de civilização" (sic). Esta infecção, como muitas outras, reflecte os sinais da civilização, tal como ela existe.
A Igreja Católica pode, legitimamente, defender uma perspectiva cristã da existência. Mas não lhe é reconhecido o direito de confundir essa perspectiva com o sentido e a dignidade da sexualidade humana.
Em segundo lugar, é falso que, na história da humanidade, os grandes flagelos colectivos tenham sido "sempre ocasião de novas formas de solidariedade e interajuda e motivação para um rejuvenescimento espiritual". Nem de outra forma se poderia entender que se justificasse o extenso rol de desculpas públicas, que têm vindo a ser apresentadas tantos séculos depois, se os tais flagelos colectivos tivessem constituído oportunidades para tão positivas reacções da Igreja Católica, quer da sua hierarquia, quer dos seus fiéis.
É particularmente perigosa a afirmação de que a prevenção se tornaria "mais situada e objectiva se se conhecessem os portadores do VIH". Embora a Nota Pastoral admita, seguidamente, que o "rastreio universal obrigatório está fora de questão", sem indicar por que razões, a primeira posição que defende abre, perigosamente, o precedente para a marginalização e exclusão social das pessoas com VIH. Porque o conhecimento dos portadores do VIH só teria qualquer eventual eficácia preventiva se lhes fossem impostas medidas de isolamento compulsivo ou, talvez, de exterminação.
Queremos deixar claro que entendemos, como precaução universal, que qualquer pessoa conheça o seu estado de saúde, inclusive em relação ao VIH, e não temos quaisquer objecções à realização do teste de despistagem nos exames ditos pré-matrimoniais.
O que importa é saber como se faz o teste (se é voluntário ou não, se tem aconselhamento pré e pós-teste, se é gratuito e confidencial) e quais as consequências da sua realização no que respeita aos direitos da pessoa, a todos os direitos da pessoa.
Os reflexos da divulgação desta Nota Pastoral estão demonstrados, atestando que as suas consequências sobre os direitos das pessoas são o seu aspecto mais negativo.
O primeiro exemplo da violação dos Direitos já foi dado por um membro da Igreja Católica.
Afirmando "aceitar as orientações dos bispos", o cidadão Tomás Carvalhão, padre, em declarações ao jornal televisivo da SIC, no dia 20 do corrente, expressou as declarações mais desrespeitadoras daqueles direitos e insultuosas.
Demonstrando um elevado e inadmissível grau de ignorância sobre a realidade da infecção pelo VIH/SIDA e sua evolução, o cidadão padre Tomás permite-se negar o direito ao casamento e a constituir família aos seropositivos que considera "incapazes de sustentar a vida". Exemplificando, talvez, as "novas formas de solidariedade e interajuda e motivação para um rejuvenescimento espiritual" que a Nota Pastoral anuncia, considera os seropositivos "podres" e que devem ser impedidos de espalhar a sua "podridão".
Estas afirmações não são apenas revoltantes. O cidadão Tomás Carvalhão ultrapassou qualquer limite no incitamento público ao desrespeito dos direitos essenciais das pessoas, reconhecidos na Constituição Portuguesa, nomeadamente: o direito à integridade pessoal, à capacidade civil, ao bom nome e reputação, à imagem, à reserva da intimidade da vida privada, à protecção contra qualquer forma de discriminação e a constituir família.
A Associação ABRAÇO está a estudar a apresentação de uma queixa contra o autor destas declarações, por incitamento ao desrespeito da ordem constitucional.
Entretanto, exigimos:
- do Governo, o cumprimento das suas funções de garante dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos;
- da Comissão Nacional de Luta contra a SIDA, o esclarecimento urgente da sua posição sobre a utilização do preservativo e sobre os direitos das pessoas com VIH/SIDA.
A Direcção
Margarida Martins
Maria José Campos
Pedro Silvério Marques