Carta Aberta
Domingo, 23 de Janeiro de 2005
Carta Aberta Ao Sr. Francisco Louçã
Exmo Sr Francisco Louçã:
Foi com um total espanto, desapontamento e repugnância, que assisti ao final do debate entre V. Exa e o líder do PP, Dr Paulo Portas, aquando da discussão do direito à vida e assistindo ao argumento reaccionário de que quem não concebe vidas não pode falar do assunto.
Espanto porque me habituei a ver esse tipo de argumentário da boca de quem procura para a sociedade portuguesa e sociedade humana em geral o ideal de que, sendo os seres humanos todos iguais, serão uns mais iguais do que outros por cumprirem "melhor" a “natural” (e quase divina) condição humana. Espanto porque quem tinha até agora defendido este tipo de ideias tinham sido aqueles que entendem que há seres humanos em melhores condições para realizarem a tão natural condição humana, isto por estarem "mais aptos" para conceber filhos, constituir família, gerar riqueza, comandar os outros e conduzi-los para a transcendência. Espanto, enfim, porque estas ideias de superioridade estava eu habituado a ve-las a sair da boca de misóginos, racistas, homófobos, fascistas e fanáticos religiosos e nunca de uma força partidária que, apesar de nunca ter tido o meu voto, nunca deixou de ter a minha estima.
Desapontamento, porque (apesar do tom radical e moralista que algumas das vezes apresentava na apreciação dos ideais ou objectivos dos seus adversários políticos - colocando quase uma fasquia maniqueísta entre os bons e os maus da política e onde o Bloco se situava obviamente entre os primeiros; apesar da aproximação política, de carácter para mim pouco claro, a algumas causas sociais, numa atitude aparentemente populista de “ir a todas”) sempre vi no Bloco de Esquerda uma força política que, independentemente dos seus objectivos eleitorais, introduzia na discussão politica portuguesa questões pouco usuais e úteis para aqueles que nem sempre – e muitas das vezes, nunca! – se reconheciam nos discursos politicos e nos programas eleitorais dos restantes partidos, muitas das vezes a cheirar a mofo, e não reconheciam legitimidade e existência às novas causas sociais que a evolução das sociedades despoleta todos os dias. Desapontamento, porque vejo (agora que o poder está mais perto e que é necessário conquistá-lo a todo o custo) que esse mesmo mofo se está a instalar no discurso “bloquista” e que o verniz progressista começa a estalar, dando lugar a insultos pessoais e anti-democráticos.
Repugnância, porque a ideia transmitida no final do debate aqui em causa, é a ideia de que só aqueles que de alguma forma contribuem para a geração da vida podem e têm legitimidade para a defender, retirando da discussão e remetendo para um exílio argumentativo e anti-democrático todos aqueles que, de algum modo (por condição ou opção), não participam nessa excelsa tarefa. Se levarmos esta ordem de ideias à últimas consequências, estão justificados os “aparteids” físicos e intelectuais e os regimes ditatoriais. Repugnância também, porque o argumento foi dirigido a uma pessoa específica, cuja vida pessoal é matéria de comentário nos bastidores da sociedade e da política, e que, naquela sua acusação – e porque V. Exa conhece muito bem os comentários de que falo mais acima e não é inocente - representaria especificamente um tipo de pessoas que (seja por condição ou opção, repito) não parecem participar usualmente na procriação da digníssima raça humana. Repugnância, enfim, porque V. Exa tomou nas mãos um direito que é de todos (o do direito à defender a vida) e negou a muitos, e mais especificamente a alguns, esse mesmo direito. Fique sabendo, Sr Louçã, que sendo eu gay, solteiro e sem quaisquer desejos de ser pai, não lhe reconheço o direito (aqui sim) a retirar-me qualquer direito que seja!
Posto isto, Sr Francisco Louçã, só nos resta a todos duas coisas. Lamentar e aprender.
Lamentar, porque verificamos todos que a distância entre o cidadão comum e os que se apresentam a querer governar o pequeno e moralmente depauperado país em que vivemos, se encontra cada vez mais visivel e que essa mesma distância é cavada todos os dias pelas trapalhadas de uns e de outros líderes partidários (com os custos que isso acarreta para a tão frágil sociedade portugesa). A trapalhada em que V. Exa se viu agora envolvido com este episódio é, infelizmemte, mais uma contribuição para o racismo social que, todos os dias, afasta discriminatoriamente os cidadãos da política e que aumenta a descrença num futuro melhor, participado por todos.
Aprender, porque todos podemos verificar com este episódio que as forças partidárias, que sempre tiveram enormes dificuldadades em lidar com a diferença e que sempre olharam para muitas facções da sociedade como demasiado diferentes para poderem ser ouvidos ou levados a sério (isto quando não eram olhados como criminosas ou moralmente repugnates), continuam na mesma, seja mais à esquerda ou mais à direita, e que muito trabalho há a fazer no seio dessas organizações e sociedade em geral para acabar com todo o tipo de superioridades, sejam elas racista, financeiro-economicista, sexista, religiosa ou outra qualquer. Porém, para que este trabalho tenha algum resultado, há algo que não pode ser ignorado: do lado dos partidos há que existir um verdadeiro interesse em olhar e reflectir a sociedade na sua diversidade, até às últimas consequências, de modo a que os discursos não “estalem” à mais pequena adversidade. Tal como aconteceu neste caso.
Termino dizendo, que ao Sr Francisco Louçã, que tantas vezes exigiu pedidos de desculpas aos seus compadres políticos por esta ou aquela trapalhada em que colocaram o povo português, só lhe resta apresentar publicamente um pedido de desculpas a todos aqueles que ofendeu com a sua reinvidicação a um “direito exclusivo”.
O Bloco sempre quiz marcar a diferença. Esta é uma boa oportunidade para V. Exa o fazer.
Com os melhores cumprimentos
José Manuel Duarte Fernandes
professor; ex-activista do movimento glbt português
l.camoes@netcabo.pt
(esta carta aberta foi já enviada ao próprio através do site
www.bloco.org)
Ver também:
Bem-vindas as Críticas - texto de Francisco Louçã [25 Jan 2005]