Jul 2002
Estas são as conclusões do estudo realizado por Rita Paulos que pode ser contactada (dúvidas, curiosidades, opiniões) em: ritapaulos@portugalmail.pt.
A autora agradece o apoio do PortugalGay.PT, ILGA Portugal, Grupo Oeste Gay e bar Dorius para a realização deste estudo.
Estudo realizado na Universidade da Beira Interior orientado pela Professora Dr.ª Maria Johanna Schouten
Conclusões
O casal homossexual masculino é uma das novas formas familiares emergentes na sociedade contemporânea. É em si um conceito recente que só a investigação pode ajudar a conceptualizar. Este foi o objectivo da presente investigação.
Ao longo de toda a pesquisa tentou-se percepcionar os homossexuais enquanto elementos de uma unidade familiar; analisar como se estrutura e organiza o núcleo conjugal; procurar saber se os casais gays encontram soluções que tornem a sua relação igualitária no presente contexto, por outras palavras se são expressão pura da dialéctica de companheirismo e, por outro lado, saber se os papéis conjugais se distanciam do modelo tradicional de conjugalidade, sem deixar de vislumbrando a liberdade de estratificação imposta pelo género nestes núcleos. Tradicionalmente, compreender o casal e as relações de conjugalidade traduz-se na análise das diferenças entre homens e mulheres e a forma como se estabelece a relação das diferenças numa situação de unidade conjugal, isto porque os diferentes papéis e expectativas de género acabam por influenciar os quadros de interacção no casal. Quando nos referimos aos casais homossexuais temos de ter em conta que estes estão livres da estratificação imposta pelo género. Tendo em mente os objectivo desta investigação, é indispensável averiguar as estruturas que enquadram o casal e os próprios membros do casal enquanto portadores de uma identidade específica, nomeadamente os seus capitais. No que diz respeito ao casal, o objectivo adjacente a este estudo era caracterizar as normas internas exercidas na gestão do relacionamento, respeitando os parâmetros que Hill (cit. Michel, 1983: 221) considera serem essenciais para investigações orientadas para a interacção no casal [Tipologia de Hill: Sub-capítulo 2.3. Interacção no casal]. Assim, foi estudada a autoridade no casal, com base nas dimensões: tomada de decisão, execução das decisões e divisão das despesas; análises que reflectem os estatutos e as relações entre os diferentes estatutos dos membros do casal. Seguidamente é apresentada a análise da divisão das tarefas domésticas, factor que demonstra as diferenças de papéis a partir do tipo e quantidade de tarefas desempenhadas por cada um dos membros do casal. Por fim, e respeitando a tipologia de Hill, são analisados os processos de comunicação, conflito, consenso e de resolução de problemas. Finalmente, de forma exterior à tipologia seguida, foram observadas as opiniões dos inquiridos no que diz respeito à possibilidade de casamento e à utilização da Lei 7/2001 de 11 de Maio.
A técnica de recolha de informação utilizada foi o inquérito por questionário, que apesar se revelar superficial neste contexto, revelou-se o meio possível para conhecer a população, os seus comportamentos, opiniões. No que diz respeito ao tratamento da informação obtida através dos inquéritos, foi efectuada a análise de conteúdo, no sentido de ter como produto final a descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo das comunicações.
A amostra é constituída por indivíduos que pertencem ao sexo masculino, são homossexuais, residem em Portugal e vivem ou viveram uma relação com um parceiro do mesmo sexo. Dos cinquenta inquiridos, apenas dois se reportaram a relações passadas. A média da duração das relações caracterizadas é de três anos. Os indivíduos inquiridos têm uma idade média de 24 anos revelando uma amostra jovem. No que se refere ao grau de escolaridade, esta amostra revela-se bastante variada, sendo o seu grau superior o mestrado e o grau inferior a quarta classe. Quando analisamos as características socioprofissionais dos elementos que constituem a amostra deparamo-nos com um grande número de profissionais intelectuais e científicos, seguido de um grande número de estudantes do ensino superior e, directores e quadros dirigentes. Podemos concluir que os elementos que constituem a amostra pertencem a um nível socio-económico médio ou médio alto.
Não havendo um evento institucional que marque o início do relacionamento, a coabitação reveste-se de um significado especial. Os elementos inquiridos dividem-se em dois tipos de organização da vida conjugal, sinónimo de diferentes posturas perante a mesma realidade. Aproximadamente metade da amostra vive em coabitação total, partilhando o mesmo espaço doméstico a tempo inteiro, os bons e os maus momentos, modelo que se assemelha ao matrimonial dominante. Pouco mais de metade dos inquiridos vive a relação em regime de coabitação parcial, semelhante ao regime LAT (living apart together) praticado pelos casais heterossexuais, ou seja, a coabitação tem lugar aos fins-de-semana, ou num dado número de dias por semana, de acordo com a vontade ou disponibilidade de cada um. A coabitação parcial prende-se com a existência de um ideal de independência e preservação do espaço pessoal. Este regime de coabitação pode constituir-se como um passo transitório em que é avaliada a relação no sentido de considerar as possibilidades de uma maior fusão material e emocional do casal, conduzindo ao regime de coabitação total. Dentro do regime de coabitação parcial, quatro dos casais analisados vivem em cidades/distritos diferentes e um outro casal vive em regime de coabitação parcial e consequência um dos membros ser casado heterossexualmente. Nos cinquenta casais que constituem a amostra, treze são relações com menos de um ano, dos quais dois casais vivem em regime de coabitação total. Grande parte dos inquiridos afirma ter tido uma relação homossexual antes da relação caracterizada. Ainda no que diz respeito aos casais em regime de coabitação parcial, quando se concretizam os encontros, na maioria dos casos, estes têm lugar na habitação do parceiro com maiores capitais. No entanto, neste contexto, também acontece os encontros serem marcados de forma rotativa no lar de um ou outro dos parceiros. Por outro lado, nem sempre os encontros se propiciam no lar de um dos membros do casal. As excepções são o encontro em locais alheios aos dois e em espaços adquiridos pelo casal.
No que diz respeito às relações de autoridade e dominação no núcleo conjugal, os dados observados acerca da tomada de decisão e execução das decisões e divisão das despesas - indicadores essenciais para a compreensão destes conceitos -, apontam para a conclusão que os casais homossexuais não executam papéis conjugais estereotipados de acordo com um papel de género correspondente ao modelo tradicional de conjugalidade.
No que concerne à tomada de decisão e execução das decisões a base teórica assenta numa tipologia de Kellerhals (1984) adaptada por Moreira (1998) que se distribui em três modelos: modelo de decisão "sinárquico", compartimentado e diferenciado [Tipologia de Kellerhals (1984) e adaptação de Moreira (1998): sub-capítulo 2.3.2. Estatutos e autoridade no casal]. Quando analisadas as informações dos inquéritos concluímos que as decisões referentes ao casal são, de modo geral, tomadas em conjunto, atendendo à opinião dos parceiros (modelo "sinárquico"). Os assuntos são conversados, as soluções possíveis são negociadas, as opiniões ouvidas e tomadas em conta, ou seja, o ideal de deliberação conjunta é uma constante. A excepção encontra-se, por vezes, no que toca a assuntos particulares, de cada um dos parceiros. No que se refere a execução das decisões, esta é, geralmente, também partilhada. Apenas um terço da amostra pratica os modelos diferenciado, no qual o parceiro com maiores recursos e mais idade decide e executa - o que confere suporte à "teoria dos recursos" para o estabelecimento das bases do poder familiar - , e compartimentado em que um dos parceiros dirige os domínios dos quais é executante e para os quais se mostra mais competente. No que concerne, especificamente, à divisão de despesas, normalmente, este é também um campo negociado, dependendo do rendimento de cada um dos parceiros, das necessidades, etc. (Igualitarismo negociado). A análise deste indicador transparece um processo democrático, flexibilidade e rotatividade.
A divisão do trabalho doméstico é um bom indicador para demonstrar as diferenças de papéis, por relação ao tipo e à quantidade de tarefas desempenhadas por cada um dos parceiros. Esta dimensão assenta na tipologia de Oakley (cit. Moreira, 1998) [Tipologia de Oakley (cit. Moreira, 1998: 25): sub-capítulo 2.4. Divisão das tarefas domésticas] constituída por três modelos distintos de divisão das tarefas domésticas: padrão de igualdade, de equilíbrio e de segregação. Na divisão do trabalho doméstico, os padrões de organização analisados apontam, novamente, no sentido da negociação e do equilíbrio entre os parceiros (padrão de igualdade e padrão de equilíbrio), sem a aplicabilidade de papéis estereotipados de acordo com o modelo tradicional. A divisão das tarefas domésticas é na maioria das vezes totalmente partilhada, tendo em conta os gostos, as aptidões e o tempo disponível após a actividade profissional desempenhada. Mesmo no caso particular do regime de coabitação parcial, a divisão das tarefas é negociada e sucede que alguns dos parceiros para além da manutenção do seu lar dão o apoio possível na habitação do seu companheiro no período que lá permanecem. Nos casos em que nenhum dos parceiros sente gosto ou aptidão pelas tarefas domésticas e o casal possui um rendimento que o possibilite, a solução encontrada é contratar alguém que lhes faça a manutenção da casa.
Os dados analisados sugerem a prevalência de um modelo que remete para a ideia de androginia, isto é, cada um dos parceiros desempenha papéis identificados tanto com um padrão de feminilidade, como de masculinidade. Contudo, encontram-se variáveis que podem introduzir variações no modelo. Por outro lado, os dados apontam para um modelo de simetrias negociadas.
Analisando o cruzamento entre a divisão do trabalho doméstico e divisão das despesas [Tipologia de Tanner (cit. Scanzoni e Scanzoni, 1988: 198): sub-capítulo 2.2. O casal], podemos concluir que a grande maioria dos inquiridos pertence ao modelo de casais homossexuais que praticam o Igualitarismo negociado, ou seja, a maioria dos casais caracterizados não respeita o modelo tradicional de casal. São, ao contrário, casais caracterizados pela troca de papéis e igual autoridade na tomada de decisões. Este modelo corresponde ao Modelo Moderno de relação homossexual masculina, apresentada por Harry [Tipologia de Harry (cit. Moreira, 1998: 39): sub-capítulo 2.2. O casal], que se caracteriza pela proximidade de idade entre os membros do casal, para além de que não são assumidos padrões específicos de protagonização de papéis.
No que diz respeito aos processos de comunicação, de conflito, e de consenso, podemos concluir pelas respostas dos inquiridos que, geralmente, os desentendimentos têm origem na falta de tempo disponível para a relação em consequência da absorção profissional, conduzindo ao sentimento de insegurança, desconfiança e ciúme. Num contexto de conflito é, normalmente, o membro do casal com maiores capitais que tem a iniciativa de dialogar com o objectivo de atingir o consenso. A maioria dos inquiridos revela que não existe no casal dificuldade de, nestas situações, reequilibrar a relação, muito embora, por vezes, este processo necessite de algum tempo de reflexão. Ao contrário do que defende Moreira [Moreira refere-se ao tipo de recompensas e gratificações a que os diferentes géneros dão prioridade: sub-capítulo Estatutos e autoridade no casal], estas comunicações revelam que também os homens dão prioridade à segurança (a grande maioria dos homens inquiridos dá muita importância à segurança). Por outro lado, Kaufmann (1993) defensa que nos casais heterossexuais é a mulher que tem maior abertura emocional (self-disclose) o que contribui para que se preocupe mais em comunicar, segundo este autor, este facto surge em consequência da sua posição mais vulnerável, da sua posição assimétrica e da acumulação de papéis dentro da relação. No caso concreto deste estudo, são os homens com maiores capitais que têm maior abertura emocional.
Quando inquiridos acerca da Lei 7/2001 de 11 de Maio, que no presente dá direito, apenas, a benefícios fiscais em sede de IRS (por falta de regulamentação), a totalidade da amostra responde não ter usufruído deste direito. De entre as respostas analisadas compreendem-se como algumas das razões para não usufruir deste direito: questões familiares - quer relações anteriores, quer o desconhecimento por parte de familiares da relação gay caracterizada -, respeito das normas, valores e ideologias dominantes da sociedade e consequente dificuldade de aceitação dos casais gays, falta de confiança na relação, falta de informação acerca dos direitos concedidos pela lei, dependência económica e duração da relação menor do que a que a lei exige.
Quando inquiridos acerca da possibilidade de casar, se o casamento gay fosse institucionalizado em Portugal, a amostra dividiu-se entre respostas de dúvida, positivas e, na maioria, respostas negativas. As respostas de dúvida basearam-se por um lado, na pressão que a comunidade heterossexual maioritária e (religiosamente) correcta impõe através das normas e comportamentos que considera certos e aceitáveis, e por outro, na ideia de o casamento ser uma instituição ultrapassada e de mera formalização da relação.
As respostas negativas, posição dominante da amostra, prendem-se com o individualismo e preservação do espaço pessoal; o conservadorismo religioso; e a visão do casamento como algo dispensável e de mera formalização, considerando-se que o casamento não é necessário à existência do amor e ao sentimento de felicidade na relação. No entanto, mesmo neste grupo de inquiridos transparece a aceitação da institucionalização do casamento gay como um direito que não deve ser barrado em consequência da opção sexual de cada um.
Podemos concluir, no que diz respeito à amostra deste estudo, que, de uma maneira geral, a liberdade de estratificação imposta pelo género contribui para o estabelecimento de um modelo conjugal no qual, os papéis conjugais se distanciam do modelo tradicional de conjugalidade. E, por outro lado, que o casal homossexual masculino pratica modelos igualitários de conjugalidade, não existindo assimetrias na generalidade da amostra analisada.
O presente trabalho é dado por findo, na convicção de que os objectivos foram atingidos. No entanto, não se apresentam as conclusões como definitivas ou irrevogáveis. A partir deste trabalho podem criar-se pistas para futuras pesquisas no sentido de conceptualizar os casais gays.
Rita Paulos
ritapaulos@portugalmail.pt