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Sexta-feira, 31 Março 2017 15:55

PORTUGAL
20 anos depois - Andrea Peniche



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A causa dos Direitos Humanos é um chapéu imenso onde debaixo dele se encontram muitas lutas, entre elas o feminismo, e no feminismo muitos olhares feministas. Fica aqui o olhar de Andrea Peniche sobre estes 20 anos.

PORTUGAL: 20 anos depois - Andrea Peniche

Eu quero o mundo inteiro

“Nada é permanente, exceto a mudança”, diz-nos o filósofo. E o sentimento que tenho, quando olho para trás, para estes últimos vinte anos, é esse mesmo: tanta coisa mudou, tanta coisa ainda há para mudar.

Três foram os momentos e/ou problemáticas que se conservaram na minha memória como determinantes, no sentido em que exigiram de mim um crescimento intelectual, por um lado, ou lá permaneceram porque o horror não desvanece com o tempo.

Começo pelo horror: Gisberta 2006. Toda a miséria humana que emerge deste caso ancorou na minha memória. A história de Gisberta é paradigmática porque cruza em si várias opressões. Gisberta não era simplesmente Gisberta, como, aliás, nenhuma mulher está autorizada a sê-lo. Para além de ser mulher, Gisberta era transgénero, imigrante, pobre, sem-abrigo, prostituta, seropositiva… Gisberta carregava (quase) todos os fardos de que o mundo se consegue lembrar. Mas Gisberta cruzou-se com outros deserdados do mundo, os rapazes das Oficinas de São José. As discussões que surgiram após o assassinato de Gisberta permitiram-nos avançar imenso na caracterização do crime de transfobia, assim como permitiram descobrir os abusos sexuais e os maus tratos que ocorriam nas Oficinas de São José.

Os outros dois acontecimentos ficaram na minha memória porque exigiram de mim um esforço de descentramento, o exercício de me colocar no lugar do Outro e de perceber que entre o Outro e eu própria, apesar de não estarmos no mesmo lugar, há mais semelhança do que dissemelhança.

O casamento entre pessoas do mesmo sexo foi uma daquelas reivindicações em que não me revi completamente, não sendo contra, também não era a luta que mais me mobilizasse. Por um lado, porque fazia o paralelismo com o casamento heterossexual e, se não via neste uma prática emancipatória, o casamento entre pessoas do mesmo sexo também não poderia sê-lo. Aprendi, pois, que as coisas não são bem assim, que as relações, sendo ou não contratualizadas, podem ser aquilo que as pessoas quiserem fazer delas, podem ser mais igualitárias (ou menos desigualitárias), mas aprendi, sobretudo, que pelo facto de as pessoas pertencerem a uma minoria – seja ela sexual, social, cultural, étnica, etc. – não se pode exigir delas a obrigatoriedade de serem a vanguarda da transformação social, ou seja, percebi que todas e todos temos também o direito à frivolidade, e até mesmo à mediocridade. Recusar mais esse fardo, aquele que nos diz que para sairmos da nossa posição de subalternidade temos que ser pessoas extraordinárias, temos que merecê-lo, é recusar essa ideia de que somos intrusos e intrusas na casa dos direitos humanos. Não precisamos de ser nem melhores nem piores do que quem detém privilégios, existir é o único passaporte que nos podem exigir nessa entrada.

Todas as aprendizagens surgidas da tensão entre o meu ativismo no movimento feminista e a minha solidariedade com o movimento LGBTQ permitiram-me desafiar conceitos, teorias e práticas. Quando, por exemplo, penso na necessidade de mudarmos a linguagem, no sentido de a tornarmos mais inclusiva, penso na necessidade de afirmar a categorias mulheres. Mas depois sou desafiada pelo movimento LGBTQ, que retorque e afirma que dizer homens e mulheres não esgota a realidade, porque não diz todas as identidades, porque a realidade não é composta apenas de homens e mulheres e há outras categorias que têm de ser ditas e afirmadas. Este desafio permanente é extremamente enriquecedor, pois permite não nos isolarmos nos nossos problemas e perceber que a emancipação é um movimento com várias interseções e que sem elas o projeto de uma sociedade justa não faz sentido, porque é truncado.

Eduardo Galeano dizia que “somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos”. Grandes conquistas exigem de nós grandes ambições. A solidariedade e a compreensão das propostas dos diversos movimentos sociais são o que nos permite ter grandes ambições. Toda a igualdade, nada menos do que toda a igualdade. Toda a unidade, nada menos do que a unidade.

Andrea Peniche, Março 2017
Ativista do Movimento Feminista

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