Como foi a infância "antes" da Lara?
Nasci em Lisboa. Olhando para trás, acho que sempre conheci essa mulher que viria a chamar-se Lara. Apenas não tinha consciência plena dela e acho que tinha demasiado medo de descobrir a verdade, a minha realidade. A minha infância foi pontuada por um feitio alegre e bem-disposto contra uns pais que cedo se aperceberam que "havia algo de errado comigo" e sempre fizeram distinção entre eu e o meu irmão. Fui muito maltratada por todos: pai, mãe e irmão. Tão maltratada por eles dentro e fora de casa como, por exemplo, na escola primária, que fui perdendo a minha alegria natural.
E revelar a Lara ao mundo?
A minha essência sempre lá esteve, obviamente, mas aos 14, 15 anos e depois de tanto bullying na escola e rejeição em casa, decidi assumir que era homossexual, visto que me sentia sexualmente atraída por homens desde sempre e desconhecia por completo que existiam mulheres trans. Eram outros tempos e a informação era muito pouca, ou nenhuma, e penso que era o caminho mais fácil para mim na altura. Mas as coisas não batiam certo na minha vida, principalmente em mim. Eu sempre me vesti de uma forma andrógina, com roupas muito largas de maneira a que não se notasse o meu corpo. E esse conflito foi-se agudizando. Só cerca de dez anos depois tive a noção plena e real que eu era uma mulher. Muito lentamente fui contando a pessoas, que eu pensava serem minhas amigas, e tive todo o tipo de reacções negativas: afastaram-se de mim, maltrataram-me, humilharam-me. Apenas um número mínimo de verdadeiros amigos me aceitou e ficou a meu lado até começar o meu processo, aos 29 anos. Durante esses cinco anos até ter coragem para começar o processo clínico e me assumir plenamente, fui tentando sobreviver o melhor possível num ambiente familiar hostil sempre com uma postura andrógina.
E viver nessa ambiguidade como foi?
Olhar-me ao espelho era como se visse duas pessoas: a que saía à rua todos os dias, de roupas largas, cabelo comprido e ar andrógino, e a mulher que brilhava através dos meus olhos e que sempre tinha estado lá. Foi muito difícil e sofri imenso.
E começou então um processo complicado...
O meu processo clínico foi complicado. Tinha consultas com o chefe da equipa que "tratava" os casos de transexualidade no Hospital de Santa Maria: o psiquiatra e sexólogo Rui Xavier Vieira que considero uma pessoa horrenda e que me tratou no masculino sempre, desde a primeira consulta. Fui avaliada por vários psicólogos, fiz um batalhão de exames psicológicos, hormonais e - pasme-se - até fui obrigada a fazer um EEG (electroencefalograma) e um TAC ao cérebro! Nunca soube de mais ninguém que tenha feito tal coisa num processo deste género. A parte cirúrgica só surgiu anos depois.
Fala-nos um pouco sobre o teu post recente sobre amigos e menos amigos
Esse post foi escrito como um desabafo e apenas visível para os meus amigos. Escrevi-o porque faz este ano, 15 anos que comecei o meu processo clínico. A minha experiência clínica não foi das melhores. A parte da avaliação psicológica de que falo no post, e cuja orientação era do Rui Xavier Vieira foi horrível, fui escrutinada e tratada como uma cobaia de laboratório durante sete anos sem nunca ter um feedback sobre mim própria da parte dele ou de um psicólogo. Nunca me dei bem com os vários tratamentos hormonais que fiz e quando chegou a parte cirúrgica - sete anos depois - as coisas não correram bem. O Dr. Décio Ferreira foi o médico cirurgião que me colocou expansores no peito (próteses que se vão enchendo de soro fisiológico para expandir a pele e/ou músculo para posteriormente se colocarem próteses de silicone) e seria de esperar que um profissional com dezenas de anos de experiência soubesse o que estava a fazer. Fiquei com duas cicatrizes enormes, uma por baixo de cada mama e ambas fora do sítio onde deviam estar, e as mamas demasiado afastadas. Agora já tenho as próteses de silicone, mas o mal já estava feito. O peito não ficou nada do que eu desejava ou sonhei para mim, nem a nível das cicatrizes nem a nível do tamanho. E, apesar disto e do discurso altamente transfóbico e ignorante do Dr. Décio Ferreira, mantenho por ele respeito e carinho. Sempre fui bem tratada por ele, quanto ao meu peito já nada a fazer agora.
Referes também o papel da Jó Bernardo...
Vejo o facto de falar na Jó Bernardo como uma atitude natural e de imensa relevância. Não esqueço quem foi importante para mim e me ajudou, mesmo que hoje, no presente, a situação se tenha modificado. O meu passado faz tão parte de mim como o meu presente. E não o esqueço. A Jó Bernardo foi-me referida por dois médicos psiquiatras assistentes das minhas consultas com o Rui Xavier Vieira que me aconselharam a falar com ela, pois achavam os nossos casos semelhantes. Falei com ela e a Jó foi uma amiga, confidente e mentora que me ajudou a encontrar o meu próprio caminho até à Lara que descobri sempre ter sido. E isso nunca nada nem ninguém apagará. Se não tivesse sido a Jó Bernardo, provavelmente o meu caminho ainda teria sido mais difícil e espinhoso do que foi.
E como foi o comportamento das associações LGBTI?
O comportamento das associações, colectivos ou grupos sempre deixou muito a desejar, no que às pessoas trans diz respeito. Muito poucos são aqueles que realmente fazem alguma coisa para nos incluir e/ou ajudar, e aqui não me posso nunca esquecer das Panteras Rosa. As Panteras Rosa foram o único colectivo que me apoiou quando precisei e que, ao longo de todos os anos desde que existem, têm lutado ao lado das pessoas trans. Os outros vão dando umas pinceladas cosméticas apenas para fazer de conta que nós existimos e que temos uma palavra a dizer no que aos nossos direitos diz respeito.
E como é a Lara hoje?
Hoje em dia a Lara é uma mulher como qualquer outra: com as suas inseguranças, medos, fraquezas, mas com um sentimento profundo de que sempre foi fiel a si própria e aos seus princípios.
Queres deixar uma mensagem para fechar esta entrevista?
Quero apenas apelar a todas as pessoas trans que lerem esta entrevista que a tomem como uma experiência de vida com muitos baixos e com muito sofrimento, mas que o que interessa no final é estarmos bem connosco e, acima de tudo, sermos nós próprias. E para as que não são trans, que percebam que ser-se trans não é uma opção ou uma escolha: nasce-se assim.
Despida-reflexões de uma mulher transexual
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