Pela primeira vez, um tribunal canadiano reconheceu oficialmente que um rapaz de cinco anos pode ter um pai e duas mães - um casal de lésbicas - suscitando inquietação por parte das organizações de defesa da família dita tradicional.
Num acórdão proferido terça-feira ao final do dia, o Tribunal de Recurso da Província do Ontário decidiu que uma canadiana que vivia maritalmente com a mãe da criança devia também ser reconhecida como sua mãe e, portanto, como o terceiro elemento parental da criança.
Uma instância inferior recusara-lhe esse estatuto, por considerar que a legislação da província relativa à família reconhece apenas uma só mãe, não cabendo ao tribunal modificá-la.
A mulher, originária do Ontário, explicara o seu pedido fazendo valer que o nascimento tinha sido planeado com a sua parceira homossexual que carregou no ventre a criança depois de uma inseminação artificial e que esta a considera também como mãe.
As duas mulheres, cuja identidade não foi divulgada, decidiram que o pai biológico devia permanecer na vida da criança e levaram-no a reconhecer a sua paternidade, o que impedia que a mãe não-biológica pudesse adoptar o bebé.
A queixosa requereu o usufruto dos mesmos direitos que os outros pais e os seus advogados sustentaram a sua defesa na lei canadiana que autorizou em 2005 os casamentos entre cônjuges do mesmo sexo.
Nos seus considerandos, os juízes do Tribunal de Recurso notam que as duas mulheres "viviam juntas numa união estável desde 1990 e que em 1999 tinham decidido fundar uma família com a ajuda do seu amigo X" que foi o dador de esperma.
Defenderam que a legislação local sobre a filiação e que tem 30 anos estava agora ultrapassada e ia, neste caso preciso, contra "o melhor interesse da criança".
"Não há dúvida de que a legislação não prevê a possibilidade de declarações de filiação de duas mulheres. Mas é o produto das condições sociais e dos conhecimentos médicos da época", escreveram os juízes.
Os argumentos contra e a favor
Várias organizações de defesa dos direitos da família tradicional denunciaram este acórdão. "Os ataques contra a célula familiar vão acabar por destruir a nossa sociedade", declarou Mary Ellen Douglas da Campanha pela Vida, perguntando-se onde se vai fixar o limite "sobre as declarações de parentesco múltiplas".
Por seu lado, Joseph Bem-Ami do Instituto para os valores canadianos denunciou "um activismo judicial", lembrando que dezenas de decisões sobre crianças são adoptadas diariamente no Canadá, "sem que seja necessário mudar a definição da família".
Uma organização de defesa dos direitos dos homossexuais, Egale Canada, saudou a decisão do tribunal, afirmando que ela reconhece a realidade da existência de casais lésbicos.
Para Nicole LaViolette, professora de Direito na Universidade de Otava, a decisão do Tribunal de Recurso constitui um precedente porque é a primeira vez que um tribunal de Ontário "reconhece direitos de filiação a três pessoas: duas declarações de maternidade e uma de paternidade".
Todavia, é um precedente limitado na medida em que o tribunal teve o cuidado de precisar que se pronunciava sobre um caso particular, declarou. "As decisões relativas a uma criança fazem-se caso a caso e não é algo que se vá aplicar a muitas pessoas", sublinha.
Para LaViolette, pode-se imaginar a mesma decisão no caso de um casal heterossexual que, por não poder ter filhos, recorresse a uma mãe de aluguer.