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7ª edição do Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa, um evento envolto de alguma revolta mas também de alegria. Celso Júnior, o seu mentor desde do início chega a esta edição num clima político hostil, com falta de apoio da Câmara Municipal de Lisboa e mesmo com faltas de apoios dentro da comunidade GLBT.

Mais que isso são as palavras sentidas de Celso Júnior: há uma comunidade adormecida (e aqui comunidade é não só os GLBT como todos os alfacinhas) a aguardar um "Messias" qualquer para fazer o milagre que levará à aceitação, à convivência, à consciência de que eventos como este devem ser apoiados por todos e todas sem demagogias ou moralismos hipócritas.

Fica aqui o testemunho de Celso Júnior a quem dou, desde já, os meus parabens pelo trabalho realizado no festival.

Apoios e Desapoios

PortugalGay.PT: Como foi o festival de cinema Gay lésbico de Lisboa sem o apoio da Câmara Municipal de Lisboa (CML)?

Celso Júnior: Desde de o ano passado que eu já estava avisado: havia um desejo real da mudança do nome do festival para um futuro apoio. Em dezembro do ano passado recebi um fax onde sugeria que fizéssemos uma nova apresentação mudando o nome para "Festival das Diversidades" que talvez eles nos apoiariam. Decidimos então em assembleia geral [da Associação Cultural Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa] e por unanimidade que seria enviada novamente a mesma proposta com o nome que este festival sempre teve. E em 9 de maio de 2003 (entre Dezembro e Maio nós com telefonemas, e tudo mais) recebemos um fax onde dizem que este ano não tinham verba, que lamentavam não poder apoiar o festival.

PG Já em 2002 se falava na hipótese de o festival morrer, que morreria de pé, mantendo o seu nome que, bom ou mau, é o nome. Que tens a dizer sobre isto?

Não tenha a menor dúvida: dizem que todo o homem tem um preço, por enquanto o meu ainda não chegou. Não são tostões da Câmara (era o que me faltava). Prefiro morrer na miséria. Eu conheço várias misérias, com esta eu consigo viver com a outra (a intelectual) é mais difícil. Não estou à venda e muito menos o festival.

PG Mas mesmo assim conseguiste apoios algo inesperados...

O filme "Walking on Water" já o ano passado não apresentei por falta de dinheiro, e este ano ia acontecer de novo. Fiz um peditório e foi maravilhoso que o Miguel do "Boys´R´Us" vem e nos paga o filme. Eu tinha pedido uma ajuda de 50 Euros por pessoa, apareceram dez pessoas e eu consegui 500 Euros. De repente chega o Miguel com 1000 Euros que me trás o filme todo. Eu antes de ver um bar do Porto vi o ser humano (eu nem sabia que ele era dono de um bar). Eu não tenho a cultura da noite. No ano passado passei uma sugestão que cada casa daqui de Lisboa patrocinasse um filme, fizesse uma festa... as pessoas não aparecem... não há uma resposta. Mas não é só os bares, mesmo grupos de interesse poderiam ter aproveitado isto.
Para o ano caso haja festival, vou procurar quem mostrou interesse, ou seja: a Filmoteca de Toronto (Canadá). Nós temos trazido filmes deles comercialmente, desta vez sensibilizaram-se connosco. Provavelmente podem não só ceder-nos um programa caso para o ano haja festival, mas podem vir dinheiros do Canada para cá. Vou tentar outros países, porque não!?

PG Qual o teu comentário ao facto de a CML não ter verba para apoiar o festival quando nós cidadãos, e em especial lisboetas, sabemos que a verba de publicidade da CML para o ano transacto já foi excedida em promoção das obras da Câmara?

Uma coisa que me irrita nessa historia é o tentarem subestimar a minha inteligência (a coisa passa por aí). Agora se há pessoas que gostam de ser enganadas que deixem... tem gente que gosta de ser enganada... as pessoas não querem é ver o óbvio da questão.
Outra coisa é esta exposição dos armários: receber um fax no dia 9 de Maio às 7 da noite! A sensação que eu tive foi: "querem meter-me de novo dentro do armário". Ai querem? Então vão ter não só eu como o festival todo. E foi assim que nasceu esta exposição...
Você não pode imaginar... imaginar a revolta... a angústia que eu senti naquele momento... virou material: comecei a pensar armário atrás de armário, ideia atrás de ideia. Foi o melhor festival que eu tive até hoje em termos de realização pessoal. Por outro lado foi o mais solitário: senti-me profundamente abandonado este ano.
Para mim esta administração camarária esta coerente consigo própriá. Eu nunca esperei que eles actuassem de outra maneira. Tal como eu estou a desempenhar o meu papel. Mas aqui a responsabilidade é da comunidade: não só da comunidade LBGT mas de toda a comunidade de Lisboa.

GLBTs e o Festival

PG Achas que existe essa comunidade LGBT?

Quer queira, quer não, ela existe. Afinal nós também fazermos parte dela. Agora o que não existe é uma espécie de união... é sempre um pequeno grupo de gatos pingados com pouco poder.

PG Mas tu não achas que "comunidade" é algo que está entendido como unida em prol de um objectivo?

Pelo menos em teoria devia ser, ela não age como deveria, mas que existe isso existe. Sobre tudo num ano de muito trabalho como foi este ano, muita coisa ficou no plano das ideias, mas no plano do concreto (na hora de por a mão na massa) foi desesperante.
Por exemplo, falando ainda da comunidade, antes uns dias do festival recebi um e-mail do António Serzedelo [presidente da Opus Gay], uma mensagem que começava com uma critica à CML... mas aquele e-mail na realidade era de principio a fim uma critica à própria existência do festival! Quer dizer... eu acho que, sinceramente, não senti aqui uma crítica construtiva: muito pelo contrário.

PG Eu não li essa mensagem... quando tu dizes que é uma critica ao festival, queres dizer que o António Serzedelo (e a Opus Gay) acha que este festival está mal organizado?

Não. O que eu acho que está na questão, é que há uma base destrutiva de ver a coisa. Mas eu não queria pegar na Opus Gay ou no António Serzedelo em particular, seja o que for... de uma maneira geral há algo destrutivo que em primeiro lugar olha aquilo que é criticável. Porque de certa maneira eu acho que é esta a ideia geral: aquilo que você destroi, você possui. Este tipo de sensação dentro da própria comunidade é constante, é algo de mesquinho, esse e-mail, por exemplo, eu o vejo mesquinho de princípio ao fim.
As partes mais doídas deste ano nem de longe vieram da CML... tenho até que agradecer á CML por isso: porque foi na CML que eu encontrei a força que faltava dentro de mim próprio. Quero dizer que se a Câmara teve uma generosidade foi nesse sentido, cumprindo com o seu papel de "mau da história" (segundo o nosso ponto de vista). Agora... foi graças à CML que eu consegui descer no fundo do poço de tal maneira que aquilo se transforma em revolta e eu acho que consegui dar a volta.
Agora a comunidade em geral, não estou a falar aqui só da comunidade LGBT, deixou passar uma oportunidade muito interessante: fomos boicotados pela imprensa, por mais informação que enviassemos por mais coisas que fizesse-mos o silêncio dos media é quase absoluto. Há pequenas notas mas ninguém se interessou realmente, ninguém veio a fundo, ninguém parou para perceber o quanto isto poderia ser interessante, este ponto de vista que foi abordado este ano que é a questão dos armários.
Veja o caso dos contactos com empresas: você vê cartas que parecem que foram escritas pela mesma pessoa, muda só o logotipo. Na revista de bordo da Virgin Airlines o festival está anunciado como um evento a ser visto, a TAP-Air Portugal nem sequer nos recebe quanto mais responder.
Ou seja: enquanto o nosso país não se preocupa com o assunto, eu tenho o mundo de olhos postos em Portugal neste momento com o que vai acontecer. Eu tenho 225 filmes passando dentro dos armários, filmes que eu consegui com direitos cedidos pelos directores ou distribuidoras. Eu não posso passar o que eu quero [porque é necessário respeitar direitos de autor], e eu tenho a conivência de todas essas pessoas fora de Portugal.
Outra coisa que aconteceu durante este ano no festival foram as grandes crueldades. As coisas que mais me magoaram são de dentro da própria comunidade LGBT. Coisas como, por exemplo, gays em que eu acreditava, pessoas amigas muito próximas, que não só achavam que eu devia mudar o nome deste festival como também me disseram que se eu continuasse com a minha posição não merecíamos ser ajudados e que nem "agiota" nos pegava. É ultrajante escutar este tipo de coisa! Eu tenho isso ainda mexendo cá dentro. Normalmente vou fazendo o meu trabalho, vou ganhando o mundo. Este ano esperneei mais porque a situação era muito injusta, e além de tudo eu não tenho a menor vocação para activista e, de repente, tenho que estar fazendo um trabalho nesse sentido: como muita gente que devia estar fazendo não está.

PG Mas tu já és activista mesmo só enquanto organizador do Festival nestes sete anos!

Eu sei, mas é assim: é uma coisa que eu não tenho que levantar muita bandeira. É claro que tem sempre a luta da coisa mas eu nunca tinha sido confrontado com uma situação com foi este ano: não só pela Câmara mas muito mais pela própria comunidade. Agora o que eu queria dizer-te é que tal como eu nunca havia esperneado como este ano também nunca tinha sentido outro tipo de preconceito que senti este ano. Não se esqueça que eu não sou português e sendo Brasileiro tive de escutar coisas como "não estando feliz volta para sua terra", vindas também de pessoas mais próximas que você possa imaginar. Quer dizer: eu tenho os meus impostos pagos, vivo há 15 anos em Portugal, e tenho que levar com essa? Não!
Eu sou um homem de projectos, eu consegui este festival, sei exactamente onde eu queria levar este festival. Se as pessoas não conseguem olhar para além do seu próprio umbigo é aqui começa a minha prepotência: este festival é feito para o mundo, e para mim, pessoalmente, o grande objectivo de cada ano é ter um catálogo que documente o festival. O que me deixa "banzado" é que este festival trouxe grandes realizadores, tão grandes que hoje produzem filmes que eu não tenho capacidade monetária para trazer os seus filmes. As pessoas tem mesmo preconceito de ver o que se tráz a este festival. E de uma coisa que sou medonhamente prepotente é na minha capacidade de selecção porque é uma das poucas coisas generosas que eu faço. E aqui tenho medo de falar a palavra mesmo: eu quando estou pintando a minha pintura não penso noutras coisas, penso na minha "tusa", nas minhas fantasias, pelo contrário este festival não é feito para mim. A quantidade de filmes maravilhosos e filmes nojentos que eu já trouxe para este festival ninguém imagina... porque não é para mim que passam: eu não existo como pessoa, como identidade "Celso". Quando faço este tipo de festival, não. Este festival é feito pelo outro, e o objectivo deste festival feito pelo outro é muito claro: é um mundo melhor nem que seja para eu viver nele.

Os não-GLBT e o Festival

PG O Festival Gay e Lésbico de Lisboa é só para os gays e lésbicas ou para toda a gente?

Sempre para toda a gente. E mais: é um festival que tem que estar reservado para qualquer das identidades LGBT e, sobre tudo, para a comunidade em geral. Por exemplo: agora que todo mundo fala em diversidade, até pessoas que achavam que a luta LGBT era uma luta pelo ghetto, já acham que a "diversidade" é uma solução. Eu continuo dizendo que a diversidade tem que estar no evento em si e não no nome.
O que faz a diferença do nosso festival para os outros congéneres é a abertura do nosso festival para a sociedade em geral.

PG O festival arrancou esta sexta-feira, dia 12. Tinhas a assistência que querias? Foi uma abertura como esperavas?

As pessoas que eu queria nem consegui ver se estavam lá ou não. Eu entrei num processo de fadiga em que não me lembrava do nome de pessoas fundamentais. Eu não consigo lembrar do que falei ou do que não falei. Eu sei que tinha o vice-presidente do ICAM, que são pessoas que eu conheço e eu nem me lembrava do nome do José Pedro e da Teresa, coisa horrível! Eu não tive tempo de falar com o director do Instituto Cervantes, porque tinha que tomar conta de pormenores pequenos, porque eu não tinha voluntários, e mesmo que houvesse voluntários...
O grande problema dos voluntários, mesmo esses que são conseguidos à última hora, é que eles pensam que como o festival começa ás oito da noite ou ás nove eles começam a trabalhar por volta dessa hora. Não passa pela cabeça de todos que o trabalho, o falar, a preparação é muito mais complexa.
Na sua pergunta de se eu estou satisfeito com a abertura: não, nem um pouco. Além de estar cansadíssimo, achar injusto o estado físico em que eu estava, indecente o facto de não poder "curtir" mesmo nada, tínhamos umas 450 pessoas... num Fórum Lisboa com capacidade para 700 pessoas. Aqueles lugares vazios você nota, este ano o melhor prémio que eu gostaria de ter por todo este trabalho era a casa cheia. No entanto eu saio com a sensação da tarefa compridíssima, e agora é o momento da comunidade agir. E aqui não é a comunidade LGBT mas a própria cidade de Lisboa: puseram lá [na CML] quem puseram agora tentem conseguir a coisa. Façam abaixo assinados, tomem iniciativas, façam qualquer coisa, eu não vou entrar nessas coisas...

PG Tu pensas que a comunidade hetero se tem afastado do festival devido a uma evolução política da esquerda para a direita ou por outras razões?

O ponto principal foi o 11 de Setembro. Eu nunca me esqueço, eu estava na conferencia de imprensa do 5º Festival. Foi um festival que talvez tivesse sido o melhor festival de sempre: eu tinha realizadores, actores... era um ano de ouro total e de repente, tudo se perdeu. Era um ano de viragem com todos os convidados que eu tinha foi um grande azar aquilo tudo ter acontecido naquele preciso momento. Quando aquelas coisas caíram eu senti que o mundo nunca mais seria o mesmo, e o mundo não é mais o mesmo... estabeleceu-se um medo e esse medo está ao nível das diferenças sejam elas qual forem, e o Festival ressentiu-se também com isso.

Organizar e sobreviver

PG Sei que o Festival, devido a limitações financeiras, teve que demitir todos os assalariados do Festival, Celso incluído. Ou seja, para todos os efeitos (teóricos e práticos), estás desempregado. Então eu pergunto: de que vive o Celso?

No ano passado eu vivi garças a dois amigos que praticamente me sustentaram. Consegui pagar-lhes com o meu subsídio de desemprego, subsidio de desemprego este que era para eu viver este ano. Eu tenho vivido muito mal, e mesmo vivendo mal incomodo muita gente que acha que eu tenho obrigação de fazer isto como voluntário. Essas pessoas não imaginam, para já não têm cultura suficiente, não tem sabedoria de coração... podem até ser instruídas, mas sabedoria de coração zero. Estas pessoas não podem saber o que é trabalho neste tipo de coisa...

PG Tu não sabes se vai haver o 8º Festival mas já estás a trabalhar nele. Achas que as pessoas tem consciência deste trabalho de antecipação?

As pessoas só escutam o que querem, eu sempre disse que era assim. Vai haver eleições na nossa associação e quero ver se colocamos gente nova, e as pessoas que trabalham para o festival deviam ser pagas, se alguém pensa que para o ano eu faço um festival voluntário nem por sorte...
O ICAM acha que este festival tem que continuar, por isso a nossa luta é com a CML e isto não passa por uma questão de Governo. O que aconteceu aqui é graças ao Ministério da Cultura e ao ICAM que estão no mesmo partido [da CML e do Governo]. Jogando a questão para o Departamento de Cultura da CML, que eu acho de sobremaneira incompetente (muito incompetente mesmo para qualquer tipo de trabalho) e para a nossa situação a incompetência foi total. Foram grosseiros a ponto de cometerem o erro de mandarem um fax a dizer que não nos apoiavam pelo nome do festival e outro pela verba: isto no fundo é incompetência.
Quanto ao 8º Festival, obviamente que eu trabalho no festival, que ideias não me faltam, e quanto ao facto de o mundo estar de olhos postos neste festival e esperar uma resposta. Eu vou dar essa resposta, trabalhei para isso.

O Futuro...

PG No meio de uma alegria e frustração ao mesmo tempo, como se sente o Celso neste momento?

Se por um lado me sinto mais seguro e mais realizado numa série de coisas, não deixo de me sentir menos só. Nunca me senti tão só em toda a minha vida. Sozinho ao nível do pensamento.

Frase final: fiz a minha parte, agora a continuidade deste festival (do 8º), está com Lisboa, está com o país, tá... não está é comigo, eu fiz a minha parte.


Entrevista realizada pelo PortugalGay.PT em 13 de Setembro de 2003.
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