Celso Junior: É exactamente o contrário disso: grande parte do nosso público faz parte da comunidade GLBT, você se lembra que no ano passado saiu um panfleto que dizia para quem é este festival: é para todo o mundo. Uma coisa que concordamos é que um festival como este seria absolutamente redutor se fosse feito apenas para a comunidade GLBT, uma coisa que não podemos esquecer é que a heterossexualidade tambem é uma sexualidade, é uma orientação. Quando a nossa orientação deixar de ter interesse, está a perceber o que quero dizer, ou seja é a dissolução. E como se faz isso? Com a educação. Agora eu não tenho a ilusão que isso é uma coisa que vá acontecer nesta geração, isto não é uma coisa a curto prazo, mas sim a médio prazo com tendência para o longo prazo, mas não quer dizer que a comunidade GLBT tambem não tenha que ser educada. Uma coisa que me encomoda muito é que o sistema está errado. Você sabe disso eu sei disso. Que vamos fazer: criar um contra-sistema? Este ano perdemos as noites straigth. Não foi por não queremos essas noites: nós não conseguimos os filmes que queriamos. Não vou colocar um filme qualquer numa noite straigth. E aí eu acho que está a pequena diferença: uma noite straigth fala sempre de uma coisa diferente, que não é a diferença da heterossexualidade. As pessoas de uma maneira geral incomodam-se com as diferenças: se você é escuro ou claro, se tem mais ou menos de 90kg, se tem muita melamina na pele, que posso dizer... Em compensação eu tenho um ciclo de cinema alemão completamente straigth, este ciclo alemão só existe durante o festival porque não tivemos dinheiro para fazer separadamente, mas merecia um catálogo proprio, porque a nossa Associação é uma instituição cultural cujo o objectivo é fazer eventos culturais. Nós queremos institucionalizar em Lisboa o ciclo de cinema alemão. O nosso ideal é que ele não aconteça junto com o festival. São coisas distintas, publicos distintos. Calhou este ano simplesmente por uma questão de dinheiro. Eu tive que aproveitar o catálogo se não, não tinha... cadê os "mupis" na rua, cadê os cartazes?
CJ: Não pecou... nunca este festival investiu tanto em comunicação social como este ano. Claro que nós perdemos algumas benesses da Câmara Municipal de Lisboa (CML), perdemos os mupis, a divulgação internacional em Berlim do cartaz, os postais vieram errados... mas o problema não é a CML. Não ter colocado os mupis... certo que dava uma maior visibilidade mas não era fundamental. E a quantidade de dinheiro que gastei promovendo um filme como o da Yvone Bezerra (um documentário realizado por Monika Treut, rodado no Brasil) que durante sete meses nós trabalhamos? Foram enviadas mais de 40 cópias do filme para diversas entidades: jornalistas, a Maria José Rita esposa do Sr. Presidente, pessoas da direita, pessoas da esquerda, personalidades e... niguém respondeu. A excepção foi Laurinda Alves da revista "Xis" (Jornal Público) que achou imensa graça na cópia, deve ter sido a única que viu, porque onde é que estão as respostas? A quantidade de material, veja as contas do festival e veja a quantidade de cassetes, CDs, fotografias,...o que saiu nos Jornais este ano?
PG: Explica-me uma coisa: como é que eu estou uma semana em Lisboa por causa do festival e quando refiro isso nas minhas conversas, o comentário que fazem é "que festival?". Será desinteresse? Falta de saber procurar? Não há onde procurar? Ou faltou alguma coisa apoiando-vos na divulgação para dentro da comunidade GLBT?
CJ: Repara bem uma coisa, normalmente tenho uma postura um pouco mais condescendente com a imprensa em geral, contigo eu vou às claras, não só pelo à vontade, mas também porque eu acho que você está em cima do acontecimento a nível de informação sobre a comunidade GLBT. A comunidade é absolutamente "banana", não se mexe. É que não se mexe mesmo para saber o que está a acontecendo. Você quer saber uma coisa? Há jornalistas que chegaram para mim e tiveram o cúmulo de falar, "você só tráz coisa que ninguém conhece.", mas que jornalistas são estes? A quantidade de coisas com a noite de Lisboa que eu tentei fazer, uma grande festa com este festival, por exemplo, e nunca tive resposta. Tem muita coisa que me incomoda mais do que a CML, não creio que por uma questão de... como dizer... não foram "sacanas", cheirou mais a incompetência: estão despreparados, é novo aquilo para eles, mexer com isto tudo, tem coisa que mais me incomode que apesar dos cortes que este ano a gente teve, o festival só aconteceu graças à CML! Tem noção disso? Não aconteceu graças a mais ninguem, foi a CML que ainda fez este festival, com as dificuldades todas... quer dizer nós temos alguma autonomia, mas...
PG: Mas não devia ser a CML a apoiar este festival?
CJ: É claro que não devia, evidente que não, deviam ser outras instituições. Eu acho que a comunidade está muito mal informada, muito... a comunidade está debilitada. Certas instituições em que nós chegamos... você sabe o que é uma embaixada do Brasil? Eu liguei e disse "Eu sou do festival de cinema gay e lésbico..." e desligarem o telefone nem sequer me deixarem terminar a frase! Sabe o que é o Instituto Italiano dizer que não está interessado neste tipo de evento!? A Fundação Gulbenkian, a Gulbenkian... quer dizer... nem me respondeu! Nem sequer um fax! A mesma coisa a nível da Presidencia da República. Eu ainda prefiro que uma pessoa tenha a dignidade de me dizer não, e a comunidade... Quem é a parte visivel nesta estória toda? Quem recebe as culpas é o próprio festival, a incompetência passa para nós... Farto, estou absolutamente farto deste tipo de coisas! Onde está o "Lobby" que tanto falam e que não existe mesmo... Porque ele não existe! A comunidade que saiba e comece a trabalhar no sentido de ver grandes expressões, grandes nomes, grandes marcas, perfumes, as roupinhas que eles compram, e que se estão f*dendo para nós todos, eu nunca senti na pele tanto perconceito quanto este ano. É claro que ninguem me chamou de paneleiro, nunca ninguem me chamou de paneleiro na rua ou coisa do género. O perconceito que senti este ano é um perconceito que não dá para lutar contra: o silêncio, a indiferença geral, e da comunidade a posição foi igual. Recebi e-mails este ano me esconjurando pela página que não tinhamos... claro que receberam a resposta como tinha que ser: é que não dá!
CJ: Eu e a Margarida... eu e a Margarida: meses de trabalho, claro que você agora vê um certo voluntariado, mas é difuso...
PG: É um voluntariado fácil ou tirado a saca-rolhas?
CJ: A saca-rolhas, completamente! Claro que tem pessoas que são optimas, a questão é assim: com falta de dinheiro algumas pessoas... As pessoas não podem sacrificar as suas vidas pelo festival, não é tipo de trabalho que dá para se iludir. É um trabalho contínuo, nós trabalhamos 14 meses no festival.
PG: Criou-se uma Associação (Associação Cultural do Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa), certo? Onde estão os elementos dessa Associação?
CJ: As pessoas tem outras coisas a fazer. Esta Associação deveria ter dinheiro suficiente, para pagar pessoas, seja a nível de contratos, seja a nível de prestação de serviços que tem de ser feitos. As pessoas fazem voluntariado, eu este ano não tenho filmes traduzidos, não é por falta de voluntários para traduzir filmes, eu não tenho é dinheiro para pagar as máquinas, a parte técnica da legendagem. Isto foi fatal para mim, mas eu não vou abusar de pessoas para fazer esse trabalho chatíssimo que é a tradução, para depois chegar na hora e não ter máquina para passar, não dá! Este voluntariado é o que funciona, nós temos muitos voluntários neste tipo de coisas. A Associação, a nossa Associação, é pequena, é muito pequena e não adianta querer ser essa Associação em grande número, porque só vai dar mais trabalho. A Associação é uma trabalheira porque temos regras a cumprir, impostos a pagar, a Assembleia Geral para planear... quer dizer: é muito complicado.
CJ: Vou-te contar uma estória triste, e você vai ver se não é para eu subir nas paredes. Eu recebi hoje um telefonema da SIC, do programa da Catarina Furtado, "Catarina.com", o jornalista fala assim: "estou muito interessado em fazer uma entrevista para o programa da Catarina, então vou vestir-me de marinheiro e vou para o seu festival fazer umas perguntas engraçadas para o seu público"... respondi: "não vai não, não vai fazer isso." Estou farto deste tipo de coisas, detestei aquele programa que teve durante o Pride, aquele tipo de pergunta, uma pessoa estúpida, faz uma pergunta estúpida para uma pessoa estúpida responder. Não é o caso, e a comunidade por mais que eu diga que o festival não é feito só para ela, ela é muito cega e boba... é muito pouco inteligente... a comunidade não sabe tirar uso do seu festival.
PG: A comunidade, a teu ver não está formada, educada nesse sentido?
CJ: Não esta formada, não está educada, não há lobby em Portugal, não há dinheiro rosa em Portugal, não há nada: que ilusão. As pessoas em geral estão aterrorizadas com algo que pensam que existe, não é o caso, porque não existe mesmo. A própria comunidade não esta educando muito, tem que tomar posturas, quanto mais a comunidade se fechar nela própria mais ela está perdendo, mais segregada vai ficar. Se ela própria se segregar, não se impor como qualidade, então ela está perdida à partida. Num país como este, temos vantagens a nível da nossa própria diferença. Vamos fazer o quê? Cometer os mesmos erros que já aconteceram nos EUA e outros países?
CJ: O que eu tenho pra dizer para você é assim: nós nunca tivemos uma programação tão politica e de intervenção como este ano, e com uma qualidade notória a nível internacional. Nós internacionalmente ainda estamos com a bola toda, extremamente respeitados mesmo.
PG: E 2003... o festival já está a andar?
CJ: Estão marcadas as datas, agora, eu não volto a sacrificar mais os meus salários, acabou... eu não recebo desde Janeiro! O festival vai ser à medida do dinheiro, eu tenho 73 filmes, eu pago... por exemplo eu paguei 1000 EUR de direitos do filme "Cockettes", a bilheteira foi 240 EUR. Isto foi apenas os direitos, para transportar o filme de San Francisco para cá são mais uns 2000 EUR... vale apena? a cidade merece? Não me apetece ser bondoso... Ao mesmo tempo que me dá raiva do público, respeito profundamente o meu público, porque eles não são palhaços para ter um marinheiro aqui dentro fazendo perguntas bobas.
PG: Datas de 2003?
CJ: 12 a 27 Setembro.
PG: Apoios confirmados?
CJ: FNAC.
PG: Veio para ficar?
CJ: Sim, veio para ficar... CML não sei nada...
PG: Contactaste a comunidade enquanto comércio: bares e outros... qual foi a resposta?
CJ: Não foi! Não foi! Eu me incomodo, eu gastei muito tinteiro, tinteiro para mim é uma coisa que me custa caro, custa 40 EUR... e eu gastei muito dinheiro nisso, foi para jornalistas, individualidades da esquerda, da direita, e deitei esse dinheiro fora. Se eu tivesse pago o meu salário teria sido muito bem gasto, muito melhor gasto, não serviu para nada. Gastei papel e tinta. Agora, claro que há duas ou três pessoas interessadas... mas o que é que você vê no nosso catálogo ao nível do comércio? NADA.
Comentário PortugalGay.PT:
Temos um Celso Júnior desiludido com a não participação de uma comunidade que não existe: o desinteresse abrangente de instituições e publico em geral. Ficará este festival marcado nas palavras do seu organizador por uma luta de trazer ao público português um festival reconhecido no exterior mas desprezado localmente. Terá sido mais uma batalha, num campo onde a guerra está longe de terminar? O Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa termina hoje dia 28, com uma festa de arromba no Forum Lisboa, ao seu organizador o PortugalGay.PT dá os parabéns pelo bom trabalho apresentado, e faz votos que em 2003 possamos ter um festival igual ou melhor que este ano e, principalmente, mais acarinhado por essa comunidade que teima em não se organizar realmente, e pela sociedade em geral que teima em ignorar eventos do género. Somos bons ou excelentes... lá fora. Ninguém nos reconhece cá dentro. É este o país em que vivemos.
Entrevista realizada pelo PortugalGay.PT em 22 de Setembro de 2002.
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