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Política & Direitos

Jornal Público
Sábado, 27 de Maio de 2006
http://jornal.publico.clix.pt/noticias.asp?a=2006&m=05&d=27&uid=&id=81129&sid=8832

Falando apenas sobre os conceitos de análise social subjacentes a esta lei da reprodução medicamente assistida, é transparente que, em relação à reprodução medicamente assistida, o PS cede ao conservadorismo ultramontano,uma cedência que só não é ridícula porque é trágica

Artigo de Opinião por São José Almeida

Enquanto partido maioritário, o PS aprovou no Parlamento uma lei de reprodução medicamente assistida (RMA) que é o espelho de como este partido tem medo de afirmar uma posição que tenha a ver com o que é a sociedade hoje e como cede com uma facilidade imensa ao conservadorismo mais bacoco, inspirado por um fundamentalismo católico, que insiste em estereótipos caricaturais que em nada correspondem à actualidade da sociedade portuguesa ou europeia e à sua história.

Numa daquelas trapalhadas que nascem do facto de haver deputados que se acham muitos espertos, o grupo de trabalho, em que são protagonistas figuras como Maria de Belém Roseira, do PS, Carlos Miranda, do PSD, e Odete Santos, do PCP, fez uma lei que tem aspectos contraditórios, no que diz respeito aos valores que a orientam. Se ao nível do que são a investigação e os novos recursos da biotecnologia a lei obedece a critérios de actualidade, sem pôr em causa critérios éticos, há aspectos em que a lei é do mais retrógrado que se podia esperar.

Falando apenas sobre os conceitos de análise social subjacentes a esta lei, é transparente que, em relação à reprodução medicamente assistida, o PS cede ao conservadorismo ultramontano, uma cedência que só não é ridícula porque é trágica. Primeiro, a lei apenas reconhece o direito à reprodução medicamente assistida como solução alternativa para mulheres inférteis. Ou seja, para o Estado português a reprodução medicamente assistida não é um método de concepção alternativo, mas uma espécie de tratamento da infertilidade. Além desta visão redutora, a lei assenta em outro conceito discriminatório e disparatado e que mais não é do que uma construção católica, cuja igreja, aliás, anda há séculos a tentar impô-la à Europa. Ou seja, a ideia peregrina de que para haver um filho tem de haver uma família e que para haver uma família tem de haver uma mãe (mulher) e um pai (homem) a viverem juntos.

Este estereótipo não tem correspondência histórica em nenhum país da Europa, ao longo de séculos e milénios mesmo, como prova a vasta investigação sobre a história da família e da criança, com dezenas de títulos publicados e em que são referência autores como François Lebrun, Jacques Solé, Philippe Ariés, Edward Shorter e Michael Anderson, só para falar dos que estão à venda e praticamente todos traduzidos, em Portugal, há mais de dez ou vinte anos.

Só que os deputados portugueses desconhecem a história do país e da Europa, da família ou qualquer outra, como também desconhecem a sociologia das sociedades europeias e vivem na presunção de que o mundo começou quando eles nasceram, assim como parecem não se interessar por se informar sobre os assuntos sobre os quais legislam, antes preferem, pelo menos ao que indica o processo de elaboração desta lei, aplicar à legislação critérios de teor moral e moralista. Em Portugal, tal como nos outros países europeus, a sociedade não é, nem nunca foi, só composta por famílias de mãe, pai e filhos. Pelo contrário. A história da Europa é a história de sociedades compostas por famílias alargadas, cujos membros nem sempre têm laços de sangue, mas são protegidos, são a parentela, famílias em que o pai e a mãe biológicos mudam de parceiros - várias vezes até, com o aumento da idade média de vida. As famílias nucleares, as famílias burguesas, são um fenómeno do século XIX e, sobretudo, do XX que abrange principalmente as suas elites e que se vai impondo como modelo. Um estereótipo vendido como "família tradicional", que não é tradição de coisa nenhuma, a não ser da mitificação de sociedade vendida em Portugal, durante o fascismo, pela máquina de propaganda ideológica montada por António Ferro.

Mas o Parlamento português vai aprovar uma lei em que apenas reconhece o direito à inseminação artificial a mulheres - mesmo que seja recorrendo a sémen doado - que declarem ter um marido ou companheiro em união de facto. A decisão é, repete-se, ridícula, se não fosse trágica. Senão vejamos. Por que razão uma mulher infértil não pode ser inseminada artificialmente recorrendo à doação de ovócitos ou de sémen se não tiver um homem ao lado para apresentar e já o pode fazer se tiver o homem, mesmo que este seja infértil? Por que razão uma mulher não pode ter um filho se não tiver um homem ao seu lado? Então por que não é proibida a adopção por mães solteiras? Por que não proíbem as mães solteiras? Já agora, por que não proíbem o divórcio quando há filhos? Se a presença do pai/homem na educação das crianças é tão imprescindível para a formação da personalidade, então deve haver uma percentagem elevadíssima de portugueses com graves perturbações de personalidade, porque não nasceram em famílias que correspondam àquele estereótipo. Já agora, por que razão uma lésbica não pode ter um filho por inseminação artificial? Então por que não retiram os filhos às mulheres que já são mães quando estas iniciam uma relação afectiva e sexual com outra mulher? Isto para já não falar de um Governo que diz que está preocupado com a chamada crise de natalidade e até anuncia incentivos. Parece assim que, segundo o PS, a natalidade não é igual para todos.

O pressuposto desta lei é também profundamente cínico. E é-o porque é uma lei dissimulada, não assumida nos seus propósitos. Isto porque diz que o Estado português reconhece este direito apenas aos casais e aos cidadãos a viver em união de facto, mas depois não penaliza. Proíbe, sem proibir. Ou seja, impede, sem penalizar. O que na prática vai resultar na situação em que as mulheres sós e os casais de lésbicas não vão poder recorrer à comparticipação do Estado ou aos serviços do Estado para fazerem uma inseminação artificial. Mas as que têm capacidade económica vão poder fazê-la em clínicas privadas em Portugal ou no estrangeiro. E depois apenas têm de arranjar um amigo homem que assuma e dê o nome para o registo civil, como já hoje acontece a muitas mulheres que decidem optar pela chamada produção independente.

P.S. - Pessoalmente considero que esta lei não deve ser referendada pelas questões de bioética que envolve. Mais: a forma como o movimento pró-referendo conduziu o processo tornou-o inútil. Entregar as assinaturas na AR no dia da votação final global do diploma em causa e tentar suspender o processo legislativo é, no mínimo, desconhecer a lei do referendo. Para já não falar em falta de respeito democrático por um Parlamento eleito pelo voto popular.

 
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