PG Achas que existe essa comunidade LGBT?
Quer queira, quer não, ela existe. Afinal nós também fazermos parte
dela. Agora o que não existe é uma espécie de união... é sempre um pequeno
grupo de gatos pingados com pouco poder.
PG Mas tu não achas que "comunidade" é algo que está entendido como unida
em prol de um objectivo?
Pelo menos em teoria devia ser, ela não age como deveria, mas que existe
isso existe. Sobre tudo num ano de muito trabalho como foi este ano, muita coisa ficou no
plano das ideias, mas no plano do concreto (na hora de por a mão na massa) foi desesperante.
Por exemplo, falando ainda da comunidade, antes uns dias do festival recebi
um e-mail do António Serzedelo [presidente da Opus Gay], uma mensagem que
começava com uma critica à CML... mas aquele e-mail na realidade era de
principio a fim uma critica à própria existência do festival! Quer
dizer... eu acho que, sinceramente, não senti aqui uma crítica construtiva:
muito pelo contrário.
PG Eu não li essa mensagem... quando tu dizes que é uma
critica ao festival, queres dizer que o António Serzedelo (e a Opus Gay) acha que este festival está
mal organizado?
Não. O que eu acho que está na questão, é que há uma base destrutiva de ver a
coisa. Mas eu não queria pegar na Opus Gay ou no António Serzedelo em particular, seja o
que for... de uma maneira geral há algo destrutivo que em primeiro lugar olha
aquilo que é criticável. Porque de certa maneira eu acho que é esta a ideia geral: aquilo que você destroi, você possui.
Este tipo de sensação dentro da própria comunidade é constante, é algo
de mesquinho, esse e-mail, por exemplo, eu o vejo mesquinho de princípio ao
fim.
As partes mais doídas deste ano nem de longe vieram da CML... tenho até
que agradecer á CML por isso: porque foi na CML que eu encontrei a
força que faltava dentro de mim próprio. Quero dizer que se a Câmara teve uma
generosidade foi nesse sentido, cumprindo com o seu papel de "mau da história"
(segundo o nosso ponto de vista). Agora... foi graças à CML que eu consegui
descer no fundo do poço de tal maneira que aquilo se transforma em revolta e
eu acho que consegui dar a volta.
Agora a comunidade em geral, não estou a falar aqui só da comunidade LGBT,
deixou passar uma oportunidade muito interessante: fomos boicotados pela
imprensa, por mais informação que enviassemos por mais coisas que fizesse-mos o
silêncio dos media é quase absoluto. Há pequenas notas mas ninguém se interessou realmente, ninguém veio a fundo,
ninguém parou para perceber o quanto isto poderia ser interessante, este
ponto de vista que foi abordado este ano que é a questão dos armários.
Veja o caso dos contactos com empresas: você vê cartas que parecem que foram escritas
pela mesma pessoa, muda só o logotipo. Na revista de bordo da Virgin Airlines o
festival está anunciado como um evento a ser visto, a TAP-Air Portugal nem sequer nos recebe quanto mais
responder.
Ou seja: enquanto o nosso país não se preocupa com o assunto, eu
tenho o mundo de olhos postos em Portugal neste momento com o que vai
acontecer. Eu tenho 225 filmes passando dentro dos armários,
filmes que eu consegui com direitos cedidos pelos directores ou
distribuidoras. Eu não posso passar o que eu
quero [porque é necessário respeitar direitos de autor], e eu tenho a conivência de todas essas pessoas fora de Portugal.
Outra coisa que aconteceu durante este ano no festival foram as grandes
crueldades. As coisas que mais me magoaram são de dentro da própria
comunidade LGBT. Coisas como, por exemplo, gays em que eu acreditava, pessoas amigas
muito próximas, que não só achavam que eu devia mudar o nome deste festival como
também me disseram que
se eu continuasse com a minha posição não merecíamos ser ajudados e que nem
"agiota" nos pegava. É ultrajante escutar este tipo de coisa! Eu
tenho isso ainda mexendo cá dentro. Normalmente vou fazendo o meu
trabalho, vou ganhando o mundo. Este ano esperneei mais porque a situação
era muito injusta, e além de tudo eu não tenho a menor vocação para
activista e, de repente, tenho que estar fazendo um trabalho nesse sentido:
como muita gente que devia estar fazendo não está.
PG Mas tu já és activista mesmo só enquanto organizador do Festival nestes
sete anos!
Eu sei, mas é assim: é uma coisa que eu não tenho que levantar muita
bandeira. É claro que tem sempre a luta da coisa mas eu nunca tinha sido
confrontado com uma situação com foi este ano: não só pela Câmara mas muito
mais pela própria comunidade. Agora o que eu queria dizer-te é que tal como eu
nunca havia esperneado como este ano também nunca tinha sentido outro tipo de
preconceito que senti este ano. Não se esqueça que eu não sou português e
sendo Brasileiro tive de escutar coisas como "não estando feliz volta para sua terra", vindas
também de pessoas mais próximas que você possa imaginar. Quer dizer: eu
tenho os meus impostos pagos, vivo há 15 anos em Portugal, e tenho que
levar com essa? Não!
Eu sou um homem de projectos, eu consegui este festival, sei exactamente
onde eu queria levar este festival. Se as pessoas não conseguem olhar para além do
seu próprio umbigo é aqui começa a minha prepotência: este festival é
feito para o mundo, e para mim, pessoalmente, o grande objectivo de cada ano é ter um catálogo
que documente o festival. O que me deixa "banzado" é que este festival
trouxe grandes realizadores, tão grandes que hoje produzem filmes que eu não tenho
capacidade monetária para trazer os seus filmes. As pessoas
tem mesmo preconceito de ver o que se tráz a este festival. E de uma coisa
que sou medonhamente prepotente é na minha capacidade de selecção porque é
uma das poucas coisas generosas que eu faço. E aqui tenho medo de falar a
palavra mesmo: eu quando estou pintando a minha pintura não penso noutras coisas,
penso na minha "tusa", nas minhas fantasias, pelo contrário este festival não é feito para
mim. A quantidade de filmes maravilhosos e filmes nojentos que eu já trouxe para
este festival ninguém imagina... porque não é para mim que passam: eu não
existo como pessoa, como identidade "Celso". Quando faço este tipo de festival,
não. Este festival é feito pelo outro, e o objectivo deste festival feito
pelo outro é muito claro: é um mundo melhor nem que seja para eu viver nele.
Entrevista realizada pelo PortugalGay.PT em 13 de Setembro de 2003.