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Sexta-feira, 19 Fevereiro 2021 13:07

PORTUGAL
Entrevista com Sérgio Vitorino sobre a dádiva de sangue por homens que tem sexo com homens



PortugalGay.pt

Porquê tanto tempo depois, continua quase tudo na mesma?

PORTUGAL: Entrevista com Sérgio Vitorino sobre a dádiva de sangue por homens que tem sexo com homens

Estamos no século XXI, 2021, mais de 30 anos depois do início da luta contra a discriminação de homens que tem sexo homens, agora num ato tão altruísta como é dar sangue, dar vida e que parece não estar resolvido em Portugal. O PortugalGay.pt (PG) perguntou a um dos rostos que esteve sempre na linha da frente na luta pelo igual acesso á dádiva de sangue e contra um questionário preconceituoso e obsoleto. Sérgio Vitorino (SV) membro das Panteras Rosa, mas também de tantas outras causas na luta pelos direitos LGBT+, é o nosso entrevistado.

PG - Esta luta teve início com o GTH-PSR, perguntamos por isso o que levou ao início desta luta? Quem era o GTH dentro e fora de um partido político (PSR) com sede ali no 268 da Rua da Palma? Quem foram na altura os outros protagonistas desta luta?

SV - O Grupo de Trabalho Homossexual do PSR foi um grupo criado no início dos anos 90, precursor do atual movimento LGBT, e que ao longo dessa década e até à sua extinção, já no início dos anos 2000 contestou várias vezes publicamente a exclusão dos dadores homossexuais masculinos nos critérios para doação de sangue.

O grupo reclamava a igualdade direitos perante a lei e na sociedade, pelo que o tema do sangue foi um entre vários "apontares de dedo" a todas as legislações, regulamentos ou normas que, à época, eram ativamente discriminatórias, desde, em meados dos anos 90, o contestar de dicionários que mantinham definições homofóbicas e sexistas, até, por exemplo, à contestação da exclusão da possibilidade de adoção ou à Classificação Nacional das Deficiências em 1999, tabela que incluía a "deficiência da função heterossexual", ou seja, a homossexualidade, como uma "deficiência". O grupo obteve várias vitórias, como a anulação dessa mesma classificação, neste caso agindo conjunta e publicamente com a primeira direção da ILGA-Portugal, ainda presidida por Gonçalo Diniz.

Uma das ações mais visíveis sobre a questão do sangue dá-se em 1999, e é uma ação que junta ativistas do GTH-PSR, da ILGA-Portugal e da Opus Gay numa tentativa de doação de sangue numa carrinha do Instituto Português do Sangue (IPS) no Saldanha, em Lisboa, após declarações públicas do então presidente do IPS justificando a exclusão de dadores homossexuais com o facto de serem "promíscuos". Já na altura, o IPS defendeu-se afirmando publicamente que futuros novos critérios deixariam de operar essa exclusão, o que viria a fazer em várias ocasiões mais tardias, contudo vinte anos depois a situação mantinha-se inalterada.

Pelo GTH passaram várias gerações de pessoas, desde logo o seu fundador, José Carlos Tavares, acompanhado de nomes como Francesca Rainer, Fernando Guerreiro (falecido há dois anos) ou António Gomes da Costa, sendo mais tarde coordenado por William Aguiar (também já desaparecido) e depois por mim próprio, e tendo durado o suficiente para fazer parte do nascimento e das primeiras edições da Marcha do Orgulho de Lisboa (então de âmbito "nacional").

PG - Com a dissolução do PSR o GTH também se extinguiu, esta e outras lutas foram posteriormente assumidas por um novo grupo, denominado Panteras Rosa. Queres contar um pouco quem são as Panteras Rosa (PR), e como surgem? O sangue é a luta aqui em foco, mas queres falar um pouco como foi por exemplo a luta por um casal de lésbicas quando viram o prédio onde viviam ser demolido e serem as únicas sem direito a habitação, estávamos em 2004? Quem foram os protagonistas dessa luta? Uma questão leva à outra, as PR fizeram inúmeras iniciativas na luta contra a discriminação na dádiva de sangue por homens que tem sexo com homens, fala-nos um pouco disso, e de quem foram os protagonistas para alem das PR nessa fase da luta?

SV - Com a fusão do PSR no atual Bloco de Esquerda, o GTH extinguir-se-ia por volta de 2002/2003. Nesse hiato, mantive atividade no grupo de intervenção política da ILGA-Portugal e com várias outras pessoas que tinham integrado o GTH, e outras que não, num grupo lgbt do Bloco de Esquerda.

O surgimento das Panteras Rosa em 2004 corresponde de alguma forma à desilusão de um conjunto de pessoas com ambos esses planos, procurando fundar um grupo tanto livre da tutela partidária, como um coletivo político que não tivesse as mãos amarradas pelos compromissos da esfera institucional. Nesse sentido, a primeira ação direta das Panteras Rosa consistiu numa campanha contra a exclusão, pela CML, então presidida por Santana Lopes, de um casal de mulheres lésbicas, Liliana e Salete, no processo de realojamento do bairro da Cruz Vermelha do Lumiar, em Lisboa, cuja primeira atividade foi uma tentativa física - mal sucedida, mas com impacto público - de bloquear os buldózeres que iriam demolir a habitação do casal. O facto de se tratar de um caso contra o município, que apoiava a ILGA, desde logo com a cedência do espaço físico do então Centro Comunitário Gay e Lésbico de Lisboa, limitava a associação num caso como este, precipitando a criação das Panteras.

Ao longo dos anos 2000, foram vários os momentos em que as Panteras Rosa voltaram a confrontar publicamente o IPS, quer através da ação direta – como em 2005 quando um grupo de Panteras manchou de tinta vermelha a entrada das instalações do IPS, ou em 2007, quando encenámos uma "doação de sangue simbólica" frente ao Ministério da Saúde, onde comparecem de "sacos de sangue" na mão. Recordo, nessa época, uma reunião entre o então presidente do IPS e uma delegação das Panteras Rosa, na qual foram desmontados um por um os supostos "argumentos médicos" para a exclusão, sem que isso resultasse numa revisão dos critérios, quer pelo Instituto, quer pela tutela.

Integraram o grupo inicial das panteras, maioritariamente feminino, pessoas como Patrícia Louro, Vanda Violante ou Ângela Fernandes, e mais tarde na mesma década o ativista trans Stefan Jacob, no Porto António Alves Vieira (já falecido), Fernando Mariano ou Bruno Maia, em Lisboa Raquel Freire, Anabela Rocha ou (antes de saírem para fundar o Grupo Transexual Portugal) as ativistas trans Eduarda Santos e Lara Crespo (que perdemos há pouco mais de um ano), para nomear apenas alguns dos nomes que assumiram momentos de representação ou presença pública.

PG - A luta valeu a pena (valerá sempre a pena?), com certeza, a lei mudou e os questionários presentes nos impressos foram alterados, mesmo tendo levado demasiado tempo. Mudou a lei, mudou os impressos questionário, mas parece haver uma resistência, ou um hábito enraizado nos elementos do sistema de recolha de sangue, que agora verbalmente mantém as questões abandonadas por lei. Como vês esta nova denúncia sobre a existência de um questionário verbal que não só discrimina, ou continua a discriminar, como tem uma postura heteronormativa?

SV - Vale sempre a pena, tanto que hoje há uma grande diferença de contexto relativamente às épocas que referi anteriormente, que é o facto de a questão ter sido objeto de decisão política e de a discriminação já não ter nem a lei, nem as normas, do seu lado. No entanto, não deixa realmente de impressionar como numa polémica já com 30 anos se continuam a verificar resistências, sejam estas de ordem institucional ou de profissionais de saúde específicos. Penso que continuam ambas presentes, fruto de uma cultura de largos anos na qual, a pretexto da proteção da qualidade do sangue se colocava em risco essa mesma segurança através de critérios que incidiam sobre a orientação sexual e não sobre os comportamentos de risco específicos que importava despistar, já para não falar da exclusão de milhares de potenciais dadores num país que não tem assim tão assegurada a estabilidade seu stock de sangue e que se encontra em plena pandemia. Nesse sentido, as denúncias foram e continuam a ser indispensáveis ao diagnóstico da situação e ao apontar das más práticas.

PG - Numa entrevista dada à TVI a ILGA Portugal referiu que tem recolhido denúncias de discriminação nestes serviços de dádiva de sangue. Porque havendo denuncias nunca se ouviu falar delas antes. Como vês a evolução (ou não) sobre a questão do sangue, porque achas que ainda estamos neste patamar de exclusão?

SV - Tenho ideia de que as denúncias sobre este assunto têm sido periódicas ao longo de muitos anos, e como vemos ainda não terminaram. Penso que cabe ao movimento LGBT como um todo, e às suas componentes em particular, continuar a contestar o enviesamento dos critérios sempre que este se verifica e que são conhecidos casos. A continuação da existência de casos de discriminação denota uma cultura conservadora, não só no IPS mas na classe médica, que não se altera por decreto nem de um dia para o seguinte, tal como ocorre com qualquer alteração legal envolvendo "matérias de costumes", sendo sempre necessário voltar a intervir sobre elas para a sua efetiva regulamentação e aplicação. É assim que avançamos.

PG - Para terminarmos, perguntamos, achas que esta denúncia formalizada nas redes sociais por um cidadão, possa vir a ser a peça que faltava para as coisas efetivamente mudarem, agora no papel que os profissionais têm nestes serviços, tornando-os de facto mais profissionais? Achas que vamos encontrar de fato os responsáveis por esta má formação e incumprimento da lei, ou o Instituto Português do Sangue e do Transplante, vai continuar a ser uma espécie de “divindade” no sistema de saúde nacional? Afinal por muito menos já se demitiram outros responsáveis em outras áreas da saúde.

SV - Penso que é verdade que o IPS mantém o jogo de sombras e opacidade que promoveu ao longo dos anos 90 e 2000/2010 sempre que foi questionado por ativistas, mas aqui, porque não devem existir "estados dentro do estado", cabe-nos questionar desde logo a tutela, o Ministério da Saúde e o governo, exigindo formação, a aplicação das normas, da lei, não só numa perspetiva de não-discriminação de potenciais dadores, mas também na objeção à aplicação de critérios morais, logo duvidosos para uma real proteção da qualidade do sangue doado, como os que se centram na orientação sexual do dador. A clareza e objetividade dos critérios e a formação adequada a todos os profissionais e a não-discriminação são condição para o respeito pela lei, e são responsabilidade estatal e do IPS.

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