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Dia da Liberdade
 
Aberto
Prosa

O Azedo do Limão

Dez 2000

Não sabia se lhe queria dar um estalo na cara ou um beijo na boca. Na altura, nem conseguiu dizer nada, a sua maior demonstração de ira foi aquele limão deitado no copo, após algumas poucas palavras.

Quando chegou a casa, Júlia não conseguiu dormir, os acontecimentos da noite remoíam os seus pensamentos. Ligou o som baixinho para escutar Glory Box, do Portishead, enquanto fumava um cigarro para dormir. "Dá-me uma razão para amar-te, dá-me uma razão para ser uma mulher", dizia o refrão da música, sempre presente nos seus momentos de solidão. Achou que choraria, mas somente uma lágrima havia sobrado para aquele momento.

Ligou meio desesperada. Tinha que perguntar o porquê, entender a causa de uma acção tão impensada. Claro que estava bêbada, afinal todos na mesa estavam. Era o começo da madrugada. Ninguém atendeu, então Júlia caiu na cama, o sol já nascia.

Visualizou um bar, as pessoas estavam ali há algum tempo, conversando, bebendo. Parece que era um aniversário, supôs quando viu um sorriso oferecendo-lhe um bolo de chocolate. No toque das mãos, único momento em que as máscaras caíram, o orgulho descobriu-se e o peito pulsou mais forte. Mais nenhum gesto, nenhum olhar. Pouco depois, só um "queres uma boleia?", meio distraído. Claro.

Aquele amigo, companheiro de noites em Ouro Preto, chegou. Júlia e ele tiveram bons momentos juntos nas últimas férias. Os seus olhos azuis, a frieza com que tinha sido tratada por quem mais queria a atenção e o excesso de cerveja fizeram com que ela correspondesse ao beijo. Imediatamente arrependeu-se e, esquivando-se, saiu da mesa. Gostava daquela amizade, mas ponderava que um relacionamento sem desejo não tinha esperanças. Estava tudo errado. Afinal, ela queria era a atenção de Fernanda.

Ao voltar da casa de banho, lá estavam eles beijando-se. Ficou chocada. Na mesma mesa, na frente de todos os amigos. Parece que Fernanda fazia aquilo para agredi-la, pensou.

Tinha que perguntar o porquê. Ainda não havia compreendido tal confusão de bocas e desencontro de beijos. O sonho é sempre confuso, fora de foco, pensamos ao despertar.

Nove horas, sabia que não conseguiria dormir mais. Se o sono havia conseguido enganar a mente de Júlia por algumas horas, ao acordar tudo veio à tona. O desejo estava sendo sufocado pela ira. Afinal, qual era sua intenção ao beijá-lo?

Da cama, telefona novamente. Fernanda atende.

Júlia emudeceu e o refrão de Glory Box voltou-lhe à mente. Havia tanto a ser dito.

Pensou em tudo que fora omitido ao longo daquela louca relação. Os sentimentos eram sempre deixados subentendidos, enquanto elas tentavam decifrar-se em olhares. Quando se encontravam, sempre casualmente, a perturbação mútua era percebida numa hesitação constante. As palavras eram escolhidas, pois elas tentavam dizer o que nunca era falado. - Porque ficaste com ele?! - Explodiu Júlia.

A resposta de Fernanda não foi a esperada. O seu orgulho era irritante, pensou. Discutiram, choraram, mentiram. Entretanto, falaram daquele amor escondido nos gestos e olhares. Poderiam ter-se entendido caso a sinceridade imperasse.

Cartas de amor desperdiçadas são como sentimentos reprimidos que deixam o desejo inerte entre o amor e a razão.

Adriana Meireles
meirelesadriana@hotmail.com
 
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