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Política & Direitos


Agosto 2003

    Recentemente foi divulgado pelos jornais e televisões um documento produzido pelo Vaticano, em relação ao reconhecimento legal das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Tendo em conta os dias que vivemos o documento não é mais que um assumir por parte da Igreja Católica Romana (que passamos a referir como "Igreja" neste comunicado) do seu completo autismo em relação ao mundo actual em geral e à realidade Portuguesa em particular. Tudo isto é mais revoltante quando a Igreja usa como alvo directo das suas críticas um grupo inerentemente minoritário em qualquer sociedade preferindo ignorar outras questões que poderiam ser aplicadas à maioria da população.

    Logo no inicio lê-se: "...lei moral natural". Para a maioria das pessoas "moral" é um conceito diferente da "moral" da Igreja Católica. Enquanto a Igreja vê a moral como um conjunto de regras baseadas no Evangelho de Jesus Cristo[1] segundo a sua própria interpretação do mesmo, já o resto da sociedade vê o que é "bom ou mau" de forma completamente distinta. Veja-se o exemplo dos filhos fora do casamento, algo completamente "mau" de acordo com a moral da Igreja (e reafirmado no documento em causa) e a realidade nacional em que 1 em cada 4 crianças nascem fora de um casamento formal[2] sendo tal facto aceite como perfeitamente natural.

    Da mesma forma esta realidade do dia a dia esbarra com o conceito de "promoção e defesa do bem comum da sociedade" que a Igreja tão defende. Estas crianças estão na nossa sociedade e não veio mal ao mundo por isso.

    Por outro lado a confusão efectuada entre matrimónio, casamento civil e união de facto, é lamentável vindo de pessoas que se depreende formadas pelo menos academicamente e só se pode ter sido feita de forma consciente.

    Assim e para evitar "modernismos" fui ao dicionário mais antigo que encontrei (de 1976) e vi os significados:

      Matrimónio: união legítima entre homem e mulher; Casamento; Laço; Núpcias.

      Casamento: união legítima entre homem e mulher; Laço; Matrimónio; Consórcio; Núpcias.

      Consórcio: Associação; União; Combinação; Sociedade; Matrimónio; Laço.

      Civil: que se refere às relações dos cidadãos entre si; que não tem caracter militar ou eclesiástico.

      Eclesiástico: que tem a ver com a Igreja.

    A Igreja tem todo o direito de defender e definir regras para o matrimónio religioso, mas não para o casamento civil que é algo que, por definição, não está relacionado com a Igreja. O que é pretendido pelos homossexuais e lésbicas é o reconhecimento pela lei civil da sua união em igualdade de circunstâncias com os casais heterossexuais que tem um casamento reconhecido pelo Estado. O matrimónio religioso não é chamado nesta equação.

    O Vaticano que tanto lutou por ter uma referência explícita na nova Constituição Europeia neste repudia claramente as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [3][4][5][6] e da própria Comissão Europeia [7] onde são reconhecidos a casais do mesmo sexo direitos que a Igreja pretende ver barrados através deste documento (direito a reconhecimento legal da união entre duas pessoas do mesmo sexo, reconhecimento do direito a qualquer pessoa independentemente da sua orientação sexual ter tutela de um menor).

    A determinada altura o texto usa diversas referencias á Bíblia (aliás as únicas referências em todo o documento que não são documentos da própria Santa Sé) como "justificações" para a posição da Igreja em relação à homossexualidade:

      Mt 19, 3-12 - o Matrimonio é indissolúvel - o divórcio não existe (excepto em caso de adultério por parte da mulher); o valor da castidade (dos eunucos e dos religiosos)

      Mc 10, 6-9 - "mas ao principio Deus fê-los homem e mulher. Por causa disso deixará o homem seu pai e sua mãe e passarão os dois a ser uma só carne,[...] Aquilo que deus uniu não separe o homem."

      Rom 1, 24-27 - não à idolatria (23), incluindo figuras humanas; recriminação do "uso não natural" do homem e da mulher.

      1 Cor 6, 10 - (9) os "injustos não possuirão o reino de Deus", nem os "imorais" "idólatras", "adúlteros", (10) "efeminados", "sodomitas", "ladrões", "avarentos", "maldizentes", "embriagados", "salteadores".

      1 Tim 1, 10 - as leis foram feitas não para os justos mas sim para os (8) "maus", "rebeldes", "ímpios", "pecadores", "irreligiosos", "profanadores", "ultrajam pai e mãe", "homicidas", (10) "impúdicos", "infames", "traficantes de homens", "mentirosos", "perjuros", "todos os que se opõem à sã doutrina"

    Apresentados os argumentos do Vaticano através da Bíblia, questiono:

      Quais as medidas que a Igreja pretende tomar para tornar ilegais os divórcios?

      Quais as medidas que a Igreja pretende tomar para evitar o reconhecimento legal dos direitos das mulheres?

      Quais as medidas que a Igreja pretende tomar para tornar ilegal a idolatria de imagens humanas?

      Quais as medidas que a Igreja pretende tomar em relação aos filhos fora de casamentos já referidos (para todos os efeitos filhos de um adultério)?

      Quais as medidas que a Igreja pretende tomar de forma a punir todos aqueles e aquelas que tem sexo sem fins reprodutivos?

      Quais as medidas que a Igreja pretende tomar de forma a punir de forma eficaz todos os "injustos não possuirão o reino de Deus", "imorais" "idólatras", "adúlteros", "efeminados", "sodomitas", "ladrões", "avarentos", "maldizentes", "embriagados", "salteadores", "maus", "rebeldes", "ímpios", "pecadores", "irreligiosos", "profanadores", "ultrajam pai e mãe", "homicidas", "impúdicos", "infames", "traficantes de homens", "mentirosos", "perjuros" e não esquecer "todos os que se opõem à sã doutrina?"

    Porque é que o Vaticano tem tanto medo das leis de União de Facto ou Casamento Civil existentes (casamento civil no Canadá, Suécia, Holanda e Bélgica; união de facto em Portugal, Croácia, Dinamarca, Espanha, França, Israel, Noruega, Reino Unido, e alguns estados dos E.U.A.)? Porque promove o ódio a pessoas que, por natureza, tem uma orientação sexual diferente da maioria da população? Porque não toma medidas igualmente enérgicas contra todas as outras classes de "maus" e "rebeldes" (incluindo dentro das suas próprias entidades)?

    Não posso deixar de fazer um reparo à hilariante referência à nota da Congregação para a Doutrina da Fé de 24 de Julho de 1992 onde se diz:

      Deve, além disso, ter-se presente que existe sempre "o perigo de uma legislação, que faça da homossexualidade uma base para garantir direitos, poder vir de facto a encorajar uma pessoa com tendências homossexuais a declarar a sua homossexualidade ou mesmo a procurar um parceiro para tirar proveito das disposições da lei"

    Mas o que é que está neste parágrafo que não se aplique aos casais heterossexuais? O que dizer dos milhares de casamentos religiosos na nossa história com a Benção Papal que mais não foram que acordos entre nações?

    As alarvidades apresentadas no documento são por si só escandalosas, uma vez que estamos no século XXI, altura em que já não se devia ler ou ouvir este tipo de coisas, mas também pelo apelo ao "voto" de uma instituição desactualizada, desumanizada, e - no contexto destes comunicados - anti-social no apelo velado que faz à violência contra os meus iguais, muitos deles fieis desta mesma Igreja que os espezinha.

    Que consciência tem a Igreja para apontar o dedo e definir regras de moral à sociedade? Estamos a falar da Igreja da inquisição quando milhares de pessoas foram sumariamente executadas "em nome de Deus", a mesma que rejeita a distribuição de preservativos como forma de minimizar a transmissão do VIH/SIDA, a mesma que perante o abuso sexual de crianças anos a fio deixa os abusadores protegidos pela lei dita de Deus, escondendo-os de forma continuada da lei dos homens[8]...

    Não lhes reconheço qualquer autoridade nesse sentido, enquanto os "profissionais" da Igreja não se sentarem no banco do tribunal e respondam pelas inúmeras vidas que traumatizaram e destruíram...

    A lei das Uniões de Facto em Portugal não esta ainda sequer regulamentada, mas deve contemplar casais do mesmo sexo com os mesmos direitos que confere aos casais heterossexuais, são homens e mulheres que partilham amor, afecto, respeito e também sexo como uma consequência fisiológica inerente a duas pessoas que se amam.

    Não deturpem a realidade encobrindo as vossas fraquezas, e eu acredito que há justiça neste mundo e o que pretendo é nem menos nem mais, apenas direitos iguais.

    João Paulo
    Editor PortugalGay.PT

    Referências:

    [1] Glossário no Site da Diocese do Funchal
    http://www.diocesedofunchal.org
    ÉTICA/ MORAL - O sentido mais corrente identifica moral e ética, embora uma acepção mais estrita dos dois termos tenha tendência a prevalecer. Assim a ética diz respeito aos princípios genéricos e filosóficos do comportamento humano enquanto que a moral, sem abdicar desses princípios, os aplica concretamente na diversidade das situações vividas pelos homens. [...] Para o cristão, a vivência da fé supõe princípios éticos e morais decorrentes do ser pessoa em sociedade. Estes princípios são assumidos e vividos concretamente a partir do Evangelho de Jesus Cristo.

    [2] Jornal Público, 31 Julho 2003
    4% dos Portugueses vivem em união de facto
    7% dos "comprometidos" vivem em união de facto
    24% dos bébes nascem fora de um casamento formal

    [3] "Karner v. Austria" - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, 24 Julho 2003 - sobre o direito a protecção de casa comum

    [4] "Salgueiro da Silva Mouta v. Portugal" - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, 21 Dezembro 1999 - sobre o direito a tutela de menores

    [5] "A. D. T. v. the United Kingdom" - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, 31 Julho 2000 - sobre sexo consentido entre adultos

    [6] "S.L. v. Austria" - Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, 9 Janeiro 2003 - sobre igualdade de idade de sexo consentido

    [7] Recomendação 1470 (2000) da Assembleia do Conselho da Europa - sobre o direito de reunião familiar no espaço europeu

    [8] Jornal Público, 24 Julho 2003
    Quase 800 pessoas dizem ter sido abusadas na diocese de Boston

    Ver também...

    Considerações sobre os projectos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais
    Comunicado ILGA Portugal sobre este tema

 
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