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Sexo, Vidas e Crianças



Jul 2002

Sexo, Vidas e Crianças

por Miguel Vale de Almeida mvda@netcabo.pt

I - Pedofilia

Desde que vieram a público os acontecimentos da Casa Pia criou-se um consenso generalizado em torno da condenação da pedofilia. Do ponto de vista ético, este consenso é de saudar. Já do ponto de vista político, tenho algumas dúvidas. Porquê? Porque se considerarmos que os casos de pedofilia vieram confirmar o descalabro de alguns dos nossos sistemas (judiciário, educativo, de governação), então alguém tem responsabilidades; Não podem estar todos de acordo, pois isso significaria simplesmente remeter o cerne do assunto para responsabilidades individuais e não institucionais.

Seja como for, do mal o menos. Atingido o ponto mais baixo na auto-estima nacional, que desta vez toda a justiça seja feita, numa verdadeira operação “mãos limpas”: investigação exemplar e punição exemplar. Aceitemos, então, esta espécie de consenso temporário (pois deixará de o ser quando verdadeiras responsabilidades forem apuradas – se o forem). Mas façamo-lo tendo em conta três enormes perigos presentes neste tipo de consenso e das ondas de indignação generalizada.

O primeiro prende-se com a possível deriva para a justiça popular – que hoje em dia, mais do que justiça em praça pública é justiça mediática. O principal perigo reside no apontar de nomes de pessoas supostamente envolvidas sem que haja a mínima sombra de prova. Isto reflecte o pior da sociedade portuguesa: a hipocrisia e o encobrimento têm como uma das suas consequências funestas a possibilidade de mentir e fazer crer nas mentiras. Nem bom nome nem presunção da inocência sobrevivem a isto. E, no fim, raramente são os culpados os indiciados, mas sim aqueles que, por uma razão ou outra, são odiados por quem tem o poder de inquirir e/ou informar.

O segundo prende-se com a deriva para o voyeurismo, como ficou patente na repetição constante das imagens dos filmes pedófilos. Estou de acordo com a opinião que louva a comunicação social por ter revelado os casos de actos de pedofilia. Mas isso acontece porque o nosso sistema judicial e policial não funciona, e não por um mérito extraordinário do jornalismo. Por outro lado, há que distinguir o jornalismo escrito do televisivo: nas TVs gere-se mais espectáculo do que informação. Difundir imagens e depoimentos de viva voz é mais perigoso e eficaz na manipulação das mentes do que escrever um texto. É com base numa volúpia ultra-liberal que as TVs se permitem oferecer tudo, esperando dos espectadores a gestão do que vêem ou não vêem. Isto é hipócrita num país com fraca educação em geral e menor ainda em termos de consumo dos media. A apresentação dos filmes na TV não adianta rigorosamente nada à informação de que eles existem. Do ponto de vista ético e político, dizer que mostrar os filmes é importante em termos informativos é o mesmo que dizer que a revelação de crimes de actos de pedofilia por si só não choca ninguém.

O terceiro prende-se com o perigo de reproduzir preconceitos e exclusões a propósito da denúncia dos crimes pedófilos. Refiro-me à confusão latente entre pedofilia e homossexualidade, uma confusão baseada em ignorância, preconceito e, por vezes, má fé. Há que dizer de uma vez por todas que há heterossexuais e homossexuais pedófilos, e outros que não o são. Aliás – e digo-o sem nenhum prazer - a maioria dos crimes pedófilos são cometidos nas famílias, sendo os agentes sobretudo homens e as vítimas raparigas. Em mais de 160 casos de abusos sexuais de menores que a PJ tem em mãos, só dois são especificados como “homossexuais” (usando as infelizes categorias que a nossa Lei utiliza...). Os movimentos pelos direitos dos homossexuais têm sido, pela sua própria natureza, movimentos pela autonomia e liberdade sexuais. Significa isto defender a sexualidade livre e responsável entre pessoas maiores de idade e em mútuo consentimento informado. Quando se defende a autonomia sexual de um jovem está a defender-se o seu direito a ter uma educação sexual esclarecida e a não estar preso por autoridades patriarcais e familiares eventualmente repressoras. Mas está-se, ainda antes disso, a defender que ninguém tem o direito de roubar ao menor a sua autonomia sexual seduzindo-o ou violentando-o. A prática de actos pedófilos é crime, a homossexualidade é uma simples orientação sexual. Já basta que o nosso direito estabeleça a homossexualidade em actos sexuais com menores como uma agravante em relação à heterossexualidade (um escândalo bastas vezes denunciado pela União Europeia e que tem como consequência perversa dizer que é menos grave violar uma rapariga...); não precisamos que, ao denunciar os actos pedófilos, se ajude a perpetuar a homofobia. Não precisamos e não podemos permiti-lo.

Finalmente, há um assunto de que ninguém tem falado: seja qual for a orientação sexual (ou mesmo nenhuma, pois estou em crer que a pedofilia é “uma coisa em si”) os crimes de pedofilia são cometidos de forma esmagadoramente maioritária por homens. Não é evidente, então, que qualquer coisa de errado se passa com a masculinidade, pelo menos no seu modelo mais tradicional? Não é altura de serem mobilizados os meios educativos para ajudar a transformar a masculinidade em algo que não tenha que ver com o sexismo, a homofobia ou com o exercício do poder mulheres, jovens e crianças?

6 Dezembro 2002

Miguel Vale de Almeida

Ver outras crónicas em: http://valedealmeida.no.sapo.pt/
 
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