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Dia da Liberdade
 

Domingo, 21 Março 2010 11:29

OPINIÃO
Crónica sobre a Conferência: Mudança de sexo - na clínica, no bloco, na pessoa



E assim lá nos dirigimos calmamente para o Anfiteatro III da Faculdade de Medicina da Universidade Nova, no Campo dos Mártires da Pátria em Lisboa para a conferência.


A tarde deste dia 18 de Março estava agradável, o trânsito caótico como sempre e estacionamento nem vê-lo. Depois de várias voltas infrutíferas para encontrar um local para estacionar, e como se aproximavam as 17h, hora marcada para o início da conferência, decidimos prosseguir para o estacionamento subterrâneo para não se perder mais tempo.

À porta da universidade ainda fumámos um cigarro, pois antevia-se que se estaria algum tempo sem o podermos fazer. Depois... anfiteatro III.

Teve uma boa assistência, muito mais do que a própria organização esperava, estava bem organizado e não fosse o atraso de um dos oradores, teria começado à hora marcada. Uma aposta ganha pela organização pela qualidade de trabalho demonstrado e pela afluência.

Presentes estiveram muitos futuros médicos, alguns activistas de organizações pró LGBTTI, como Sérgio Vitorino, das Panteras Rosa e João Paulo do PortugalGay.pt. Sei que estiveram mais presentes mas como não sei os nomes fico-me por aqui.

Presenças transexuais, além de mim própria e de Filipe Salema do GRIT na mesa, estiveram presentes Lara Crespo, Jó Bernardo, a Rafaela e mais uns dois ou três dos quais não me recordo dos nomes, aliás, nem sequer sei os nomes de toda a gente.

Depois de alguns minutos de espera, foi a Dr.ª Iris Monteiro (Psicóloga) que iniciou a conferência. Explanou o caminho que qualquer pessoa transexual tem de percorrer até finalizar o seu processo, e da sua oratória ressalva-se isto: uma continuada visão da pessoa transexual como doente mental, continuando assim a estigmatizar este segmento da sociedade, e uma abusiva associação da pessoa transexual à Cirurgia de Redesignação de Sexo (CRS).

Como disse, qualquer pessoa pode parar o seu processo em qualquer parte dele, e que as pessoas até podiam ter outros diagnósticos, como travestismo, por exemplo e não desejarem submeter-se à CRS.

Os problemas desta posição são que, para se ser uma mulher transexual tem-se forçosamente que desejar a CRS, ignorando os casos de pessoas transexuais, portanto com uma identidade de género (IG) oposta à genitália, mas que não rejeitam total ou parcialmente essa mesma genitália. Ou ainda, mais filosoficamente, abstraindo-se de que, quer a pessoa em causa faça a CRS ou não, a pessoa continua a mesma, pensa da mesma maneira, sente da mesma maneira e principalmente sente-se do mesmo género psicosexual que a levou a iniciar o seu processo.

Há que acrescentar que a vontade de se submeter a uma CRS É UMA CONSEQUÊNCIA da transexualidade, não uma causa, e muitos dos médicos que nos “tratam” ainda pensam em termos de “tem pauzinho é homem, tem buraquinho é mulher”, posição que relega a IG para segundo plano e que é comumente usada pelos detractores da comunidade transexual. A ser assim, não se justificava proceder-se a nenhuma CRS mas sim a terapias de reconversão há muito abandonadas pela maioia dos médicos dada a sua completa ineficácia, e unicamente advogadas pelos mais preconceituosos e transfóbicos (sim, também os há) dentro da comunidade médica.

Se por um lado temos médicos que advogam “faça-se a CRS”, logo implicando que “determinada pessoa apesar de ter genitália feminina/masculina é um homem/mulher”, a seguir dizem que “calma, para se ser homem tem que se ter pauzinho e para se ser mulher tem que se ter buraquinho”. A meu ver ou é a IG que determina qualquer futura acção, ou é a genitália. As duas simultaneamente é que não.

Também a exigência de duas avaliações me parece abusiva e exagerada, considerando que conheço pelo menos dois casos em que, um com uma única consulta e outro com duas, obtiveram logo a apreciação positiva. Quer-se dizer, para a segunda avaliação o normal são três ou quatro consultas. Depois fica-se à espera da avaliação. Ora bem, se três ou quatro consultas chegam para se fazer uma avaliação, como justificar então que se tenha de esperar dois ou mais anos em consultas (há casos que chegaram a dez anos) para que o processo siga para a Ordem dos Médicos (OM)? Ou então se são precisos anos em consultas para se obter um diagnóstico positivo, como explicar um segundo diagnóstico em quatro consultas ou menos? No mínimo acho incongruente.

De seguida discursou o Dr. Pedro Freitas (Sexologista clínico), que voltou a bater na mesma tecla, ou seja, a CRS, e que afirmou que a retirada da transexualidade do DSM é um erro. E nisto concordo em absoluto com ele, é um erro Crasso. Só quem não conheça a realidade portuguesa e os preconceitos ainda existentes em relação à transexualidade e às pessoas transexuais é que pode acreditar que essa medida não acarreta uma total e completa cessação dos apoios estatais. Quem não acreditar nisto está a ser naive.

Onde não se pode concordar com o Dr. Pedro é na continuação da transexualidade como “doença mental”. Já o termo “doença” não me agrada nada, mas aceito-o na medida em que fornece uma forte base para os apoios estatais. Agora “doença mental”, quer dizer, não acredito que nenhum psiquiatra, psicólogo ou cirurgião que já tenha tido contacto com pessoas transexuais nos veja como “doentes mentais”. E os que existirem que o façam não tenho a mínima dúvida de que é mais o preconceito e a transfobia a falarem do que a ciência.

O Dr. também mencionou que algumas pessoas transexuais lhe aparecem já a fazer algum tipo de terapia hormonal, e referiu um caso de uma que tomava uma caixa inteira de Diane 35 por dia. Obviamente que esta pessoa estava muito mal informada. Eu própria iniciei o meu tratamento hormonal antes de me dirigir ao SNS e nunca na vida cometi uma asneirada tão grosseira. Mas um facto é este, muita gente demora algum tempo a dirigir-se ao SNS, muito por culpa dos profissionais, que em vez de serem céleres às vezes parece que ainda nos metem entraves e mais entraves nos processos.

Uma conhecida minha, ao fim de 5 anos de processo, ainda não tinha autorização para iniciar a terapia hormonal. E isto é só um caso. Muitos mais haverá, pois como a dr.ª Iris afirmou, o processo só avança quando todos os profissionais envolvidos não tiverem a mínima dúvida da vontade de nos submeter-mos à CRS. Porque no fundo só se trata disto, da CRS. Tanto que na autorização da OM unicamente vem referido que fulano de tal tem autorização para proceder à cirurgia. Nem uma palavra sobre se essa pessoa é transexual, se nasceu homem ou mulher com a genitália oposta ou nem uma menção à IG da pessoa. Ora bem, se uma pessoa souber que é mulher mas sem que a sua genitália lhe cause um desconforto tal que a possa levar a cometer alguns actos desesperados, então essa pessoa não é transexual, de acordo com esta linha de pensamento.

O problema resolve-se se se adoptar a Lei de Identidade de Género (LIG) espanhola, em que, mediante um diagnóstico em que se afirma que a IG de uma pessoa é masculina ou feminina, independentemente de ter-se submetido ou não e desejar ou não ainda vir a submeter-se a uma CRS, fica tudo resolvido.

O que me espanta é como é que um profissional de saúde com opiniões próprias nestes assuntos, que advoga que uma pessoa só é transexual se desejar submeter-se a uma CRS venha defender uma LIG igual à espanhola. A mim parece-me incoerente.

Também concordo com a sua posição relativamente à abusiva autorização exigida e dada pela OM para se poder proceder à CRS.

Primeiro, e em termos simples, uma das exigências é que a pessoa em causa não seja casada. Esta posição, a partir do momento em que existam casamentos legais entre pessoas do mesmo sexo deverá ser retirada pois deixa de ter razão para existir. Mas o mais grave é que a OM NÃO TEM QUE DITAR SOBRE SE UMA PESSOA É CASADA OU NÃO. O casamento não tem nada a ver com a medicina. O casamento é uma cerimónia social e/ou religiosa e a OM não tem que opinar ou deixar de opinar nesse assunto. Só tem de falar sobre a parte médica/clínica, não social. Cada médico, como pessoa, terá a sua opinião e as suas convicções sobre este assunto, mas somente como pessoa, nunca como médico. E muito menos a OM.

Segundo, constatando-se que unicamente seguem para a Ordem os processos em que duas avaliações são positivas, ou seja, duas equipas independentes atestam que a pesoa é transexual e que a autorização é dada sem contacto com a pessoa, unicamente baseada nos dois relatórios, a Ordem nada mais faz que ver se estão presentes todos os documentos exigidos. Isso, ver se estão presentes todos os documentos exigidos, qualquer funcionário público pode fazer, não se precisa de ser médico.

Assim a autorização da Ordem nada mais é que um exercício abusivo de poder, no meu parecer ilegal, pelo menos na parte do estado civil da pessoa, e completamente insustentável, podendo levar a situações como a de há uns anos em que um bastonário da Ordem teve a atitude completamente transfóbica e lesiva de parar com as CRS por considerar a transexualidade como doença mental e ser apoiante das teorias de reconversão, a exemplo do mal afamado Dr. Zucker.

E que dizer da posição, de todos os representantes da parte médica e psiquiatra da mesa em ralação a Thomas Beatie, quando afirmaram que não era transexual? Como podem sustentar esta posição? Simples, para se ser transexual, tem que se querer fazer a CRS. E disto já falei atrás.

Mas o mais grave é a não aceitação de que um homem, se tivesse hipótese de engravidar, não o faria, pois é homem. O curioso é que estes homens são os primeiros a divorciarem-se de uma mulher se ela não puder ter filhos. Não sei se esta posição ainda é causa justa para o divórcio, mas pelo menos era. Se isto não é vontade de ter filhos, não sei o que será. Além de que a geração de descendência faz parte dos mais primordiais instintos do ser humano. Uma posição absurda da parte da mesa que fica aqui notada. Thomas Beatie É UM HOMEM, enquanto assim se considerar. E não serão terceiros a dizer a uma pessoa quem ela é ou quem deixa de ser.

Quando foi perguntado à assistência se algum homem da sala quereria ter filhos, não foi só um braço que se levantou, e uma salva de palmas explodiu espontâneamente pelo auditório, pelo que o Dr. Pedro bem arrependido deve estar de ter feito essa pergunta.

Pena foi também que nem a Dr.ª Iris Monteiro nem o Dr. Pedro Freitas tenham notado que, entre outras coisas, a falta de apoios estatais para terapias de eliminação da pilosidade corporal, especialmente a facial põe imensos problemas às transexuais femininas (obviamente os masculinos não têm este problema) e à incoerência existente entre a aceitação legal de uma pessoa como pertencente ao sexo feminino por se ter submetido a uma CRS, INDEPENDENTEMENTE DE PODER TER UMA AGRESSIVA PILOSIDADE FACIAL. Por outras palavras, a falta de apoios estatais para este fim provoca que se estejam a potenciar mulheres barbudas para freak shows. Considerando o poder económico que detemos relativamente ao custo das terapias existentes, isto parece-me uma lacuna bastante agressiva. Mais ainda se se pensar que a nossa face é das poucas partes do nosso corpo constantemente expostas ao escrutínio de toda a gente, provocando muitos problemas às pessoas transexuais femininas a partir do momento que que nos assumimos publicamente. O mais tardar a partir do Real Life Test, parte do processo de transexualidade como explicado pela Dr.ª Iris, se não for anterior.

Continuando, de seguida falou o Dr. João Décio Ferreira (cirurgião), na minha opinião a melhor intervenção deste final de tarde. Falou sobre as várias tecnicas existentes, explanou bem a sua, que recentemente foi apresentada num encontro mundial, e mais importante, explicou porque fazia o que fazia e porque não usava outras técnicas.

De ressalvar a sua tentativa de encontrar seguidores para as suas técnicas, pois, como disse, já não deve poder estar no activo muito mais tempo. E espero sinceramente que alguém tenha ficado com o bichinho para poder continuar e até melhorar este tipo de intervenções. Neste momento encontra-se sem discípulos, o que até talvez a curto prazo, certamente a médio prazo nos virá impôr mais problemas. É que, se uma pessoa que deseje ter genitália feminina tem de passar por estas cirurgias tão invasivas, pelo menos que o resultado fique o melhor que se puder, e pela apresentação parece-me um trabalho de boa qualidade.

A terminar, falou Filipe Salema (activista do GRIT), que discursou sobre a sua vivencia pessoal. Foi uma boa intervenção, tendo como únicas notas negativas a falta de rodagem no discurso, coisa que se ganha com o tempo, e a continuação da estigmatização auto-imposta de vergonha, ou seja, em vez de se lutar pela aceitação das pessoas transexuais e contra a discriminação e transfobia existentes em demasiados sectores da nossa sociedade, assume-se um discurso que quase promove o medo de se ser transexual.

E digo isto porquê? Porque, abrigando-se no direito que as pessoas têm de não revelarem quem são, pois ninguém tem a ver com isso, existem já demasiadas pessoas que têm vergonha de serem transexuais e/ou que têm medo de se revelarem e lutarem convenientemente pelos seus direitos. Faz lembrar uma altura em que as pessoas em Portugal tinham medo de falar e de lutarem contra a ditadura existente. Pelo menos é o que me vem à ideia. Se por um lado toda a gente tem o inegável direito de não divulgar que é transexual, por outro esse direito está a ser corrompido por pessoas cobardes demais para tentarem sequer fazer valer os seus direitos e argumentos, mas que às escondidas na internet não se cansam de barafustar.

Aliás, Filipe Salema já tinha sido avisado pela deputada do Bloco de Esquerda Helena Pinto no dia 11 de Fevereiro no Ácerca da Noite, em Almada, que “quem não aparece não existe”. Portanto não me parece muito íntegro um discurso que não procura motivar as pessoas a deixarem de ter medo de serem quem são e a assumirem frontalmente que nasceram assim e que não há que se ter nem vergonha nem orgulho disso. E principalmente não se ter medo de lutar por aquilo que se considera justo. O discurso da vergonha já está a mais. E já nem convence ninguém, salvo aqueles que desejam esconder a sua própria cobardia.

Finalizada a parte da oratória, iniciou-se a parte final, a das perguntas da audiência. Foram feitas algumas perguntas pelos futuros médicos, aqueles a quem esta iniciativa era mais dedicada, a mesa respondeu, e a confusão começou quando Jó Bernardo interpelou a mesa trazendo a questão da despsiquiatrização à baila.

Tirando o facto de não ser ali o sítio que eu consideraria mais indicado para questões politicas e que nem sequer reúnem o consenso da população transexual nacional, a questão era legítima e infelizente pude constatar que o dr. Pedro continua a interromper as pessoas, não as deixando falar, o que também já me tinha feito, e que considero ser bastante rude e indelicado da parte de um médico tão qualificado, também, me parece demonstrar uma certa arrogância e desprezo por quem não comungue das suas opiniões. Neste ponto uma nota bastante negativa para o Dr. Pedro, e que espero que em próximas ocasiões não dê azo a que se lhe apontem o dedo neste aspecto. Não lhe fica nada bem.

Sérgio Vitorino também falou, realçando o trabalho das pessoas da mesa em prol da discussão destas matérias e oferecendo a sua ajuda,o que inexplicavelmente foi, mais uma vez, rudemente rejeitado pelo referido Dr., aliás de uma forma mesmo agressiva. Só vim a compreender no final, depois da conferência ter terminado, quando fui à mesa falar com a Dr.ª Iris sobre um assunto pessoal, e ter apanhado meio no ar outra conversa que decorria paralelamente à minha. Mas como isto não se deu comigo, não vou falar disto.

Só umas notas finais: Não tenho concordado com as posições defendidas tanto por Jó Bernardo como por Sérgio Vitorino em relação à transexualidade, nomeadamente em relação à campanha STOP Trans Pathologization 2012, mas espero que ninguém tenha a mínima dúvida que, se hoje se fala e se discute a transexualidade da forma que se discute, em grande parte é devido ao trabalho destes dois e às Panteras Rosa. O seu a seu dono, nem ILGA Portugal, nem Opusgay, nem Bloco de Esquerda (com aquela tirada fantástica a desacreditar o deputado José Soeiro quando Francisco Louçã afirmou que uma LIG não era uma prioridade do Bloco), nem Miguel Vale de Almeida alguma vez fizeram um quarto pela causa transexual do que estas pessoas fizeram. E isso ninguém lhes pode tirar, apesar de parecer que andam a querer impôr outra versão dos acontecimentos (incorrecta, obviamente).

Em relação a uma tirada de Sérgio Vitorino, em que explanou como há alguns anos atrás faziam-se lobotomias e tratava-se a homossexualidade com choques electricos, esta dita tirada pôs-me a pensar num episódio de uma série de TV que focava um caso destes com uma suposta lésbica.

Ao fim de 5 minutos já eu comentava, “mas isto não é nada lésbica, é mas é um trans masculino. Nessa época transexuais, andróginos, alguns intersexuais, travestis e afins estavam todos metidos no mesmo saco: eram homossexuais, ponto. E durante todo o episódio ele era retratado comos se fosse uma lésbica.

E desde então tenho pensado nisto: visto não existirem estudos credíveis sobre a quem eram administrados estes “tratamentos”, quantos dos supostos homossexuais não seriam de facto transexuais e transgéneros?

Boa questão para terminar aqui esta crónica.

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