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Segunda-feira, 7 Novembro 2016 14:21

PORTUGAL
20 anos depois - Lara Crespo



O Portugalgay.pt faz este ano 20 anos e lançou um desafio a algumas pessoas: pedimos que falassem do que viram mudar nestes 20 anos no que aos direitos humanos diz respeito.


Estes textos são também um desafio aos nossos leitores a uma reflexão e, quem sabe, que possam também contribuir com a sua visão das coisas. O mundo tem tantos tons quantas as pessoas que nele vivem.

Depoimento de uma mulher trans sobre activismo

Há 20 anos atrás eu tinha-me apercebido quem eu era. Aos 25 anos finalmente sentia que algo em mim estava a despontar, e que, apesar de não saber muito bem o que era, sabia que eu não era um homem gay, nem sequer um homem.

Estávamos num tempo em que não havia internet, telemóveis nem nada do que existe hoje. Eu tentava informar-me sobre o que se passava, mas os meios eram muito escassos. Sabia o que não era, mas não sabia bem o que era. E durante alguns anos fui-me mantendo nesse limbo, até começar a ler alguns artigos que iam surgindo na imprensa estrangeira e nacional, mas era tudo muito vago e altamente tendencioso e transfóbico.

Eu nada sabia sobre o universo trans. A única coisa que sabia é que existiam mulheres trans trabalhadoras sexuais no Conde Redondo, e sabia que existiam shows de travestis em algumas casas nocturnas, como o Finalmente Club - aliás, foi aqui que tive contacto com o universo trans pela primeira vez, ao ir lá com pessoas conhecidas ver um show. Fiquei fascinada e curiosa com todo aquele universo de plumas e lantejoulas que eu desconhecia.

Quando finalmente tive acesso à internet, comecei a ter algum contacto com outras pessoas trans através do mIRC (programa de chat, para quem não sabe) isto lá para 1998, 1999. Sites e páginas eram quase inexistentes, e o que havia era estrangeiro (norte-americano, na maioria) e quase exclusivamente gay. No mIRC fui falando com pessoas, trocando experiências, tentando informar-me. Através deste chat conheci pessoas com quem contacto até aos dias de hoje.

No início do século XXI comecei o meu processo clínico de transexualidade no Hospital de Santa Maria. E foi no final de uma consulta que dois médicos, do grupo que assistiu à minha consulta, se aproximaram e me falaram na activista trans Jó Bernardo e em como eu devia falar com ela, pois os nossos casos sugeriam muitas semelhanças. Eu lá ganhei coragem, arranjei o número de telefone da livraria Esquina Cor-de-rosa - propriedade da Jó - e consegui falar com ela. E foi com a sua inestimável ajuda que me descobri e que cheguei à mulher que sou hoje.

Alguns anos depois de conhecer a Jó Bernardo surgiu a ideia de criar a primeira associação portuguesa exclusivamente trans. Surgiu então a At. - Associação para o Estudo e Defesa do Direito à Identidade de Género, presidido pela própria Jó que me convidou para ser membro da Direcção da associação.

Em Fevereiro de 2006 surgem graves notícias de um brutal assassinato na cidade do Porto. A Jó, inicialmente não tinha bem a certeza de quem era a pessoa, mas em pouco tempo e ao contrário da desinformação dos supostos órgãos de comunicação social, teve a certeza que se tratava de Gisberta Salce Júnior, mulher trans emigrante brasileira residente na cidade invicta. A At. lançou um comunicado, eu dei a cara pela primeira vez em televisão sobre este caso e houve uma manif em frente da Assembleia da República, onde estiveram presentes membros da At., Panteras Rosa, Opus Gay, ILGA Portugal, etc. e as Panteras Rosa do Porto fizeram uma acção no local onde Gisberta foi encontrada morta. Como nenhum outro, este caso terrível acabou por ter um impacto nacional e internacional.

Até esta altura a palavra “transfobia” era inexistente do vocabulário mesmo das pessoas que faziam activismo. A morte de Gisberta mudou esta forma de ver as coisas, e “homofobia” deixou de englobar tudo o que tivesse a ver com a comunidade LGB e T. Foi a partir deste momento que se começou a falar de transfobia e de crimes de ódio transfóbicos.

Entretanto, a minha vida mudou, bem como a minha relação com Jó Bernardo e deixei de me rever na At. Durante algum tempo estive afastada e quando voltei ao activismo fi-lo de uma forma mais activa e, durante algum tempo, acompanhei membros das Panteras Rosa na distribuição gratuita de preservativos, gel lubrificante e informação junto das trabalhadoras sexuais trans de Lisboa.

Durante grande parte destes últimos anos tenho tentado manter-me minimamente informada e activa no que aos direitos das pessoas trans diz respeito. Em 2011 fundei com a Eduarda Alice Santos o Grupo Transexual Portugal (GTP) onde tento dar apoio, informação e ajuda às pessoas trans que nos procuram. A Lei de Identidade de Género aprovada pela Assembleia da República precisamente em 2011 foi a face mais visível do trabalho e esforço de muita gente que lutou para que houvesse mais dignidade e direitos para as pessoas transexuais. Mas a Lei não é perfeita, muito longe disso. É necessário existir uma Lei que permita que as pessoas tenham pleno direito à sua auto-determinação de género e totalmente despatologizante, retirando psiquiatras, sexólogos, psicólogos, etc., do sistema, pois nenhum nem nenhuma de nós necessita que nos digam quem somos e muito menos que nos considerem “doentes mentais”.

E, 20 anos depois, não mudou muita coisa, mas mudou alguma. Sinto algum orgulho em ter estado presente e em ter feito parte de algumas mudanças, mas não basta. Precisa fazer-se mais e é por isso que luto agora: pela despatologização da transexualidade e das identidades trans, e por uma verdadeira Lei de Identidade de Género, em que nós tenhamos plenos direitos sobre a nossa verdadeira identidade e corpo.  Lara Crespo

O meu blog pessoal “Lara’s dreaming” serve para que eu escreva sobre as minhas experiências pessoais, reflexões, pensamentos e sentimentos sobre quem sou e o que me rodeia. É uma forma de tentar chegar aos outros - trans ou não trans - e de alertar consciências. Este ano auto-editei em formato ebook o meu primeiro livro “Despida - Reflexões de uma mulher transexual” que reúne sete anos, que considero serem os mais importantes, dos meus escritos no blog. Provavelmente, a palavra que mais encontrarão lá será “transfobia”. Porque a transfobia é muito real, diária e desgastante. E o pior de tudo, nunca esquecer que a transfobia mata. E mata muito em todo o lado e de todas as formas.

Lara Crespo, Outubro 2016

PORTUGAL: 20 anos depois - Lara Crespo

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